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Globo no altar: a conquista calculada do público evangélico
Em busca de audiência e relevância, a maior emissora do país recalcula sua rota secular e abraça o mercado religioso, em uma reviravolta histórica que redefine a televisão brasileira
Artigo
Foto: https://uploads.promoview.com.br/2025/09/Estande-Globo-na-Expo-Crista.jpg
■   Bernardo Cahue, 21/12/2025

Em um movimento que sinaliza uma das maiores mudanças estratégicas na história da televisão aberta brasileira, a TV Globo vem adotando, de forma progressiva e calculada, uma aproximação com o público evangélico. Esta guinada acontece em um cenário de transformações profundas: perda de audiência tradicional para plataformas de streaming, fortalecimento da TV Record (de propriedade da Igreja Universal) e a constatação de que os evangélicos formam um público massivo, fiel e economicamente potente. Anos depois de rechaçar a venda de parte da Record para o Bispo Macedo, a Globo agora retransmite especiais gospel e ajusta sua dramaturgia, em uma revisão pragmática de seus valores e de seu lugar no mercado.

As Frentes da Aproximação: Do Multishow às Novelas

A estratégia da Globo é multifacetada e vai além das transmissões eventuais. Ela se materializa em:

  • Especiais e Festivais: A emissora exibiu no canal Multishow o especial "Ore Comigo 2025", um compilado do maior festival gospel da América Latina, que reuniu 55 mil pessoas no Mineirão, com shows de artistas como Fernandinho e Isadora Pompeo. A transmissão foi estrategicamente agendada para o Dia do Evangélico (30 de novembro).
  • Presença em Eventos-Mundo: A Globo teve um stand na Expo Cristã de São Paulo, a maior feira cristã do mundo, que em 2025 comemorou 25 anos com uma expectativa de 500 mil visitantes. No local, a emissora promovia seu reality musical "Estrela da Casa", demonstrando interesse em garimpar talentos desse nicho.
  • Dramaturgia Inclusiva: Novelas recentes têm incorporado personagens e temas evangélicos de forma mais central e menos caricata. Em "Três Graças", do horário nobre, há um núcleo com um pastor (interpretado por Enrique Diaz) e um ex-presidiário convertido.
  • Conteúdo em Streaming: O Globoplay e a GloboNews também passaram a investir em documentários e matérias focadas nesse universo, buscando engajar o público além da TV aberta.

O Tamanho do Mercado que a Globo Quer Alcançar

Não se trata apenas de fé, mas de um formidável poderio econômico e cultural. A indústria gospel movimenta uma vasta rede que inclui:

  1. Gravadoras e Produtoras: Com catálogos extensos e artistas que lotam estádios.
  2. Eventos Gigantescos: Como a própria Expo Cristã, que reúne mais de 30 setores, incluindo empreendedorismo, tecnologia (com painéis de LED e transmissão ao vivo de alto padrão), literatura e quadrinhos cristãos.
  3. Artistas com Audiência de Massa: Nomes como Aline Barros, Fernandinho e a cantora angolana Nair Nany (com 25 milhões de visualizações online) atraem multidões e geram engajamento digital maciço.
  4. Família como Público-Alvo: O mercado entende e atrai o núcleo familiar, com espaços infantis como a "Expo Cristã Kids" e a valorização da transmissão de valores religiosos entre gerações.

Ignorar este segmento significaria, para a Globo, abrir mão de uma fatia enorme e crescente da população brasileira e de seu poder de consumo.

A Estratégia de Programação: Horário Alternativo ou Ponte para o Prime-Time?

Uma análise crítica da grade de programação atual, contudo, revela que a abordagem ainda é cautelosa. Na TV aberta, o conteúdo gospel de grande porte ainda ocupa majoritariamente horários alternativos ou canais por assinatura (como o Multishow). Na grade da TV Globo, é possível encontrar a "Santa Missa" no início da manhã de domingo, um conteúdo católico tradicional, mas os grandes festivais gospel ainda não conquistaram um espaço fixo em horário nobre ou mesmo no domingo à tarde.

Isso indica uma estratégia em dois tempos:

  • Teste e Sinalização: Usar horários menos disputados e canais segmentados para testar a receptividade e, principalmente, enviar um sinal claro ao mercado e ao público evangélico de que a emissora está de portas abertas.
  • Substituição Pragmática: Em alguns casos, esses especiais ocupam slots antes preenchidos por programação tradicional, como sessões de filmes, indicando uma priorização estratégica em busca de uma nova audiência.

Análise Crítica: Conversão ou Oportunismo?

A guinada gospel da Globo levanta questões profundas sobre a televisão brasileira:

1. Reconfiguração do Campo Midíático: A histórica rivalidade com a Record agora se dá em um novo patamar. A Globo não está apenas competindo por pontos de audiência, mas tentando cooptar a base cultural e religiosa de seu principal concorrente. É uma batalha por identidade e relevância.

2. O Dilema da Autenticidade: Até que ponto a abordagem da Globo é vista como legítima por seu novo público-alvo? O risco de ser percebida como oportunista é real. A construção de uma relação de confiança com líderes religiosos e artistas do meio será crucial, mas lenta.

3. O Futuro da TV Aberta: Este movimento é um sintoma claro de que a TV generalista, tal como conhecida, precisa se fragmentar para sobreviver. A busca por nichos específicos e altamente engajados (como o evangélico, mas também outros) parece ser o caminho inevitável em um mundo pós-streaming.

Em última análise, a estratégia da Globo é um reflexo do Brasil atual. Mais do que uma simples manobra por audiência, é o reconhecimento, tardio e pragmático, de uma potência cultural, econômica e social que a emissora, por décadas, tratou com distância ou estereótipo. O sucesso ou fracasso desta "conversão midiática" dirá muito sobre quem ditará as regras do entretenimento e da influência no país nos próximos anos.

Com informações de: Pipoca Moderna, G1 - Jornal Nacional, G1 - São Paulo ■