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O poder das ruas: um ciclo de resistência e recado ao plenário federal
Projeto de dosimetria das penas dos acusados pela tentativa de golpe de Estado, proposto principalmente por Aécio Neves e Michel Temer, tem o seu primeiro teste de aceitação (ou rejeição) popular no próximo domingo
Editorial
Foto: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSl3XrrhmGX9wn3Ta95CcnVuQrYAgUe-_l9hw&s
■   Bernardo Cahue, 11/12/2025

Em 2025, o cenário político brasileiro tornou-se um laboratório de tensão entre a vontade popular manifestada nas ruas e as manobras de uma parcela do Congresso Nacional. Três iniciativas legislativas — a anistia, a PEC da Blindagem e o PL da Dosimetria — traçam um roteário de embates onde a mobilização social obteve vitórias claras, mas também revelou a resiliência e a capacidade de adaptação de grupos políticos interessados em minar consequências judiciais. Este é o retrato de um conflito democrático onde cada recuo tático é seguido por uma nova investida, desafiando a sociedade a uma vigilância permanente.

O Terremoto de 21 de Setembro: Quando as Ruas Falaram Mais Alto

O dia 21 de setembro de 2025 marcou um ponto de inflexão. Insatisfeitos com a aprovação, dias antes, da chamada PEC da Blindagem pela Câmara e com a tramitação acelerada de um projeto de anistia, cerca de 1,3 milhão de brasileiros foram às ruas em uma demonstração de força cívica. Os atos, convocados por frentes como Povo Sem Medo e Brasil Popular, ocorreram em 33 cidades, incluindo todas as 27 capitais, unindo sindicatos, movimentos sociais, artistas e cidadãos comuns.

  • Dimensão do Protesto: Em São Paulo, o protesto reuniu cerca de 120 mil pessoas na Avenida Paulista, número cerca de três vezes superior ao de um ato pró-anistia realizado semanas antes no mesmo local. No Rio de Janeiro, um público de cerca de 800 mil pessoas acompanhou shows de artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil, em um claro apelo cultural pela democracia. (contagem leva em consideração outros atos e eventos semelhantes nos dois locais, considerando a ocupação popular massiva dos mesmos quarteirões e contagens oficiais anteriores divulgadas pelos Governos e pelas polícias).
  • O Alvo da Insatisfação: Os manifestantes carregavam faixas com os dizeres "Sem anistia e sem perdão" e "Fora, Hugo Motta", direcionando a crítica ao presidente da Câmara, um dos articuladores das pautas. A PEC da Blindagem, ironizada como "PEC da Bandidagem", era o símbolo maior de um privilégio parlamentar visto como intolerável.
  • Efeito Imediato: A pressão foi tão intensa e ampla que surtiu efeito quase imediato. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, arquivou a PEC da Blindagem, sepultando a proposta que exigia autorização do Congresso para processar criminalmente deputados e senadores. Foi uma vitória incontestável da mobilização popular.

A PEC da Blindagem: Uma Vitória Popular Explícita

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2025 representava um caso claro de autoproteção da classe política. Seu texto estabelecia que parlamentares federais só poderiam ser processados criminalmente no STF após autorização de seus pares, em votação secreta. Críticos argumentavam que, na prática, isso criaria uma "casta de intocáveis" e inviabilizaria a responsabilização por crimes comuns.

Apesar de ter sido aprovada com folga na Câmara — inclusive com votos unânimes da bancada do PL —, a PEC encontrou no Senado e na opinião pública um muro intransponível. O arquivamento foi a resposta institucional ao clamor das ruas, um raro exemplo de uma iniciativa de cúpula sendo derrotada pela pressão organizada da base. Curiosamente, pesquisas de opinião posteriores indicaram que o episódio não deteriorou a avaliação do Congresso de forma significativa, sugerindo que a rejeição à medida pode ter sido até vista como uma correção de rumo.

Do Projeto de Anistia ao PL da Dosimetria: A Metamorfose da Estratégia

Derrotada a blindagem parlamentar, o foco do conflito deslocou-se para o destino dos condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro. A estratégia política, no entanto, sofreu uma transformação semântica e jurídica crucial diante da resistência popular.

  1. O Projeto Original de Anistia: A proposta inicial, defendida abertamente pela oposição bolsonarista, era de uma anistia "ampla, geral e irrestrita". Tecnicamente, a anistia extingue a punibilidade do crime, como se ele nunca tivesse existido, e poderia, em tese, ser aplicada a crimes como os do 8 de janeiro, que não são considerados hediondos pela Constituição.
  2. A Resistência e a Reinvenção: Diante do grito das ruas por "sem anistia", a tática mudou. Sob a relatoria do deputado Paulinho da Força, o projeto foi rebatizado de PL da Dosimetria (PL 2162/2023). A dosimetria, diferente da anistia, não apaga o crime. Ela altera o cálculo e o regime de cumprimento da pena, permitindo uma progressão para regimes mais brandos (como do fechado para o semiaberto) de forma mais rápida. Para Bolsonaro, condenado a 27 anos, isso poderia significar reduzir pela metade o tempo no regime fechado.
  3. A Aprovação na Câmara: Em dezembro, o PL da Dosimetria foi aprovado pela Câmara dos Deputados por 291 votos a 148. O partido de Bolsonaro (PL) deu 75 votos favoráveis, com apenas um voto contrário dentro da legenda: o do deputado Osmar Terra (PL-RS), que classificou a medida como uma "falsa anistia".

Os Contornos e as Contradições do PL da Dosimetria

A aprovação do projeto, porém, longe de representar um consenso, expôs novas fissuras e problemas. A proposta se mostrou um instrumento político cheio de contradições e efeitos colaterais inesperados.

  • Insatisfação nos Dois Lados: Ironia do destino, o texto não agradou plenamente nem aos seus supostos beneficiários. Alguns defensores de réus do 8 de janeiro o criticaram por não garantir a liberdade imediata ou o perdão de multas, com um comunicado chegando a ironizar: "Melhor não ter nada que não ter nada". Do outro lado, parlamentares de oposição e juristas alertam que a mudança na lei penal pode beneficiar, involuntariamente, condenados por outros crimes violentos, como incêndio doloso e coação no curso do processo, que também usam violência ou grave ameaça.
  • Um "Grande Acordo" Frágil: O projeto parece ser a materialização de um "grande acordo" ou "pacto republicano" articulado nos bastidores, mas sua fragilidade é evidente. Ele tenta equilibrar-se em um fio da navalha: é suficiente para atender a uma demanda política por redução de penas, mas não é forte o bastante para ser uma anistia; é apresentado como técnico, mas tem impactos amplos e potencialmente problemáticos.
  • O Próximo Capítulo no Senado: O projeto agora segue para o Senado Federal, onde seu destino é incerto. O cenário é diferente daquele da PEC da Blindagem. Não há mais um protesto massivo e unificado como o de setembro, e a discussão tornou-se mais técnica e menos emocional, o que pode favorecer sua aprovação.

Conclusão: Um Ciclo Inacabado de Luta Democrática

A sequência dos três projetos — anistia, blindagem, dosimetria — desenha um ciclo de ação, reação e adaptação na política brasileira. As ruas demonstraram, em setembro, um poder de veto contundente, capaz de sepultar uma proposta flagrantemente privilegiadora como a PEC da Blindagem. Essa força, porém, encontrou seu limite na capacidade política de reformular a mesma agenda sob novas roupagens.

A dosimetria é, neste sentido, o produto de um realinhamento tático. É a anistia que não ousa dizer seu nome, uma concessão disfarçada de tecnicidade jurídica. Seu avanço revela que, enquanto a mobilização popular pode obter vitórias pontuais e defensivas, a transformação de uma derrota política em uma nova ofensiva legislativa é uma constante. O povo foi às ruas e garantiu uma vitória importante contra a blindagem. Agora, a questão que se coloca é se a vigilância democrática será capaz de acompanhar e decifrar as manobras mais sutis que, passo a passo, buscam reescrever as regras da responsabilização política no país. A democracia, como se vê, não se defende apenas em grandes manifestações, mas também no acompanhamento minucioso e na compreensão crítica de cada nova jogada no tabuleiro institucional.

Com informações de: Agência Brasil, BBC, Brasil de Fato, Folha de S.Paulo, G1, O Globo, UOL, Veja ■