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O povo pauta o Congresso nas ruas: prévia de 14 de dezembro
Como as ruas vomiram uma tentativa de privilégio goela-abaixo do Congresso e agora enfrentam uma anistia fantasiada
Editorial
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■   Bernardo Cahue, 10/12/2025

Um grito ecoou do Oiapoque ao Chuí em setembro e mudou os rumos do Congresso Nacional. A resposta popular a tentativas de criar uma casta de intocáveis no Legislativo foi imediata, massiva e decisiva. No entanto, a mesma arena política que cedeu à pressão das ruas em um front, articula, em silêncio, uma manobra ainda mais insidiosa: a tentativa de reduzir as penas dos condenados pelo ataque à democracia em 8 de janeiro de 2023, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro. Esta análise traça o caminho do protesto popular à derrocada da PEC da Blindagem e desvenda a estratégia por trás do novo "PL da Dosimetria", que ameaça anistiar golpistas sob um novo nome.

O Dia em que o Povo Pautou o Congresso

No domingo, 21 de setembro de 2025, o Brasil presenciou uma das maiores mobilizações políticas recentes, com um objetivo claro: defender a democracia e barrar a impunidade. Convocados por frentes como Povo Sem Medo e Brasil Popular, cerca de 1,3 milhão de pessoas foi às ruas em pelo menos 33 cidades, incluindo todas as 27 capitais. Os atos não eram meros protestos; eram um recado direto e inconfundível ao Parlamento.

  • Pauta Unificada: Os manifestantes protestavam contra dois projetos específicos: a PEC da Blindagem, que exigiria autorização do Congresso para processar criminalmente deputados e senadores, e qualquer projeto que anistiasse os condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro.
  • Amplo Engajamento: Os atos foram marcados pela diversidade. De artistas como Daniela Mercury e Wagner Moura, em Salvador, a sindicatos, movimentos sociais, estudantes e partidos políticos, a mobilização mostrou um amplo espectro da sociedade civil unido em torno da causa democrática.
  • Recado Explícito: Lideranças como o deputado Guilherme Boulos (PSOL) foram diretas: a mobilização era um recado ao presidente da Câmara, Hugo Motta, e ao Senado, para que derrubassem a PEC e não aceitassem anistia. "Só queremos ver o Bolsonaro passar o Natal na cadeia", declarou Boulos em São Paulo.

A Vitória Inconteste: A Rejeição Unânime da PEC da Blindagem

A resposta do Senado à pressão popular foi rápida e contundente. Apenas três dias após as manifestações, em 24 de setembro, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado rejeitou a PEC da Blindagem por unanimidade, com os votos de todos os 26 senadores presentes. O relator, Alessandro Vieira (MDB-SE), foi taxativo ao afirmar que a proposta sofria de "vício insanável de desvio de finalidade", pois seu objetivo real não era o interesse público, mas "os anseios escusos de figuras públicas que pretendem impedir ou, ao menos, retardar, investigações criminais".

Durante o debate, senadores de diversos partidos atrelaram explicitamente seu voto à voz das ruas. A senadora Eliziane Gama (PSD-MA) afirmou que a PEC "nasceu com o objetivo de criar um muro de impunidade" e lembrou a mobilização nacional. O senador Humberto Costa (PT-PE) destacou que "muitos mudaram de posição após a reação da sociedade". Era a mais pura demonstração de que, quando organizada, a pressão popular pode ser o mais poderoso dos lobbies.

A Ressurreição do Acordo pela Impunidade: O "PL da Dosimetria"

Enquanto celebravam a vitória contra a blindagem parlamentar, os movimentos sociais precisaram voltar sua atenção para uma nova e sorrateira ofensiva. Derrotada a ideia de uma anistia aberta, setores políticos articularam uma rota alternativa. Em uma reunião emblemática na casa do ex-presidente Michel Temer, na noite de 18 de setembro, nasceu o chamado "PL da Dosimetria".

Presentes ao encontro estavam Temer, o relator do projeto, deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), o deputado Aécio Neves (PSDB-MG) e, remotamente, o presidente da Câmara, Hugo Motta. A estratégia, conforme explicada pelo próprio Temer, era forjar um "grande acordo nacional" ou "pacto republicano", agora sob uma nova roupagem. A ideia central é abandonar o termo politicamente carregado "anistia" e propor uma revisão técnica das penas (dosimetria) para os condenados pelos crimes de 8 de janeiro.

  1. Mudança Semântica, Objetivo Similar: O projeto não livraria ninguém da condenação, mas reduziria o tempo de pena. Na prática, poderia permitir que os 141 presos pelos atos golpistas deixassem a cadeia e que condenados do núcleo crucial, como Bolsonaro, tivessem suas penas de 27 anos significativamente diminuídas.
  2. Articulação Transversa: A reunião na casa de Temer simboliza a união de figuras de diferentes espectros (de um ex-presidente do PMDB a um tucano e um parlamentar do Solidariedade) em torno de um objetivo comum: estancar a sangria e evitar que a punição aos golpistas se aprofunde, sob o discurso de "pacificar o país".
  3. Caminho no Legislativo: O projeto ganhou fôlego. No dia 9 de dezembro, o presidente Hugo Motta anunciou a votação do PL 2162/23 na Câmara, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, comprometeu-se a colocá-lo em votação no plenário do Senado ainda em 2025, assim que aprovado pelos deputados.

Conclusão: A Democracia em Vigília Permanente

A sequência de eventos entre setembro e dezembro de 2025 desenha um quadro claro da luta política brasileira atual. De um lado, uma sociedade civil vigilante e capaz de se mobilizar em grande escala para frear retrocessos democráticos, como comprovado pelo enterro da PEC da Blindagem. Do outro, uma classe política resiliente em sua busca por mecanismos de autopreservação e impunidade, recorrendo a estratégias de rebatização e acordos nos bastidores quando confrontada diretamente.

O "PL da Dosimetria" é, nesse sentido, mais perigoso que a proposta de anistia inicial. Ele tenta mascarar uma concessão política aos golpistas sob a linguagem técnica e neutra do direito. Enfraquece a ideia de que crimes graves contra a democracia devem ter consequências proporcionais e abre um precedente perigoso de relativização da justiça. Enquanto os líderes do protesto de setembro se preparam para os novos embates, a lição que fica é que a defesa da democracia não é uma batalha, mas uma guerra de trincheiras, onde cada vitória popular pode ser seguida por um novo e mais complexo desafio. A convocação de novos atos para dezembro é o termômetro de que o povo, que pautou o legislativo nas ruas, entende essa dinâmica e não pretende baixar a guarda.

Com informações de: Agência Brasil, O Globo, G1, Portal da CUT, Esquerda Diário ■