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Espetacularização da Morte: a ética jornalística em ruínas na cobertura do horror
Uma análise crítica sobre como a divulgação em massa de imagens de cadáveres nas operações policiais banaliza a violência e desumaniza as vítimas, repetindo a lógica do "troféu" que deveria denunciar
Editorial
Foto: img/20251101144600.fw.png
■   Bernardo Cahue, 01/11/2025

A exposição de cadáveres como troféus, seja por agentes estatais ou por facções criminosas, sempre representou uma linguagem de poder na guerra brasileira às drogas. No entanto, quando essa mesma estética macabra é adotada e amplificada pela mídia tradicional e por usuários das redes sociais, uma questão crucial emerge: em que medida essa divulgação se diferencia do caráter originalmente aterrorizante do ato? A prática, que transforma a morte em espetáculo, levanta questões profundas sobre até que ponto a divulgação do macabro se diferencia do caráter aterrorizante do ato violento em si.

A espetacularização jornalística do horror

A cobertura da operação mais letal da história do Rio de Janeiro, que deixou oficiais 121 mortos nos complexos da Penha e Alemão em outubro de 2025, estabeleceu um novo patamar na exibição de imagens de violência extrema. No dia seguinte à megaoperação, moradores transportaram mais de 70 corpos da mata da Serra da Misericórdia para a Praça São Lucas, formando uma fileira de cadáveres que se estendia pelo logradouro público. O G1 e O Globo não apenas noticiaram o fato, mas fizeram da imagem aérea desses corpos - capturada por drone - uma das imagens icônicas da cobertura.

A operação foi descrita por cronistas como uma chacina e uma matança deliberada, termos que buscam nomear com exatidão a magnitude da violência, para além de um simples "confronto". A cena de corpos sendo transportados por moradores e alinhados no asfalto, amplamente divulgada, não foi apenas um registro jornalístico, mas um ato de desespero de uma comunidade para tornar visível uma tragédia que o poder público tentava ocultar na mata. Enquanto famílias reviravam-se em dor, a exposição midiática dessas imagens criou um paradoxo: denunciava a barbárie, mas ao mesmo tempo arriscava revitimizar aqueles que já haviam perdido tudo.

As fotografias mostravam pessoas sendo consoladas após encontrar parentes mortos, idosos procurando familiares entre os cadáveres e mulheres chorando a perda de maridos. A cena foi descrita por testemunhas como "um retrato de mais um dia que entra para a história da violência no país".

As narrativas em disputa através das lentes

A tentativa de justificativa da carnificina seguiu por dois caminhos distintos, ambos problemáticos em seu tratamento com as vítimas:

  • As câmeras policiais foram utilizadas para construir uma narrativa de legitimidade, em uma repetição de padrões observados em outros casos de violência estatal. Em São Paulo, imagens de câmeras corporais já haviam desmentido a versão de PMs sobre a execução de um morador de rua, mostrando que a vítima estava desarmada e acuada.
  • Os vídeos dos moradores na mata da Serra da Misericórdia, por outro lado, revelavam corpos abandonados em meio a vestígios de intensos confrontos, com marcas de sangue espalhadas pela terra e equipamentos de guerra. Estes registros contestavam a narrativa oficial de descaracterização pericial do Estado, ao mostrar que nem a polícia havia subido para realizar perícia, nem os bombeiros para recolhimento dos corpos
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A Psicologia do Macabro: quando a violência vira conteúdo

Do ponto de vista psicossocial, a replicação de imagens de extrema violência em ambientes digitais compartilha mecanismos com outras formas de agressão online. O cyberbullying, por exemplo, é caracterizado por três fatores cruciais: a repetição, o prejuízo causado à vítima e a desigualdade de poder. Esses fatores ecoam fortemente na dinâmica de divulgação de conteúdo macabro:

  • Repetição e Replicabilidade: As plataformas digitais permitem que conteúdos violentos sejam republicados incessantemente, ampliando seu alcance e impacto de forma atemporal, muito além do evento original.
  • Prejuízo e Revitimização: Cada nova visualização ou compartilhamento do corpo de uma vítima representa um novo prejuízo à sua memória e um novo episódio de sofrimento para seus familiares, que veem a dor de sua perda transformada em espetáculo público.
  • Desequilíbrio de Poder: Há uma clara assimetria entre o poder institucional e midiático de quem divulga as imagens e a vulnerabilidade das vítimas e de suas comunidades, que não têm como controlar a circulação de sua própria dor.

Nesse contexto, a imagem do cadáver exposto funciona como um troféu digital, um símbolo de poder que, independentemente de quem o exiba, objetifica o ser humano e reduz uma vida a um mero instrumento de comunicação ou intimidação. A lógica é a mesma, mudam apenas os agentes e as motivações.

A psicologia oferece bases sólidas para compreender a dinâmica por trás da reprodução de imagens macabras. A exposição de corpos como troféus, seja por parte de agentes estatais ou criminosos, serve fundamentalmente como:

  • Instrumento de terror e intimidação psicológica;
  • Afirmação de poder sobre comunidades vulneráveis;
  • Dessensibilização da sociedade frente à violência.

Quando essa estética é apropriada e replicada por veículos de comunicação e usuários nas redes, ocorre um processo de banalização do horror que, longe de denunciar a violência, acaba por normalizá-la. A repetição incessante dessas imagens transforma tragedias humanas em espetáculo midiático, onde o valor jornalístico é suplantado pelo apelo mórbido.

A ética jornalística sob assalto

A prática jornalística tradicional estabelece que o respeito pelas vítimas e seus familiares deve ser parâmetro fundamental na decisão de publicar ou não imagens sensíveis. No caso da Praça São Lucas, esse princípio foi violado em múltiplos níveis:

  • Exposição desnecessária de corpos não identificados publicamente;
  • Revitimização de familiares em momento de luto intenso;
  • Falta de contextualização que transforma a violência estrutural em espetáculo.

A sequência de publicações - que começou com G1 e O Globo e foi replicada por veículos como Brasil Paralelo e outros meios nacionais - criou um ecossistema de conteúdo macabro que pouco difere, em sua essência, da lógica do troféu que critica. A diferença está apenas no meio, não no conteúdo simbólico.

Quando a denúncia se torna cumplicidade

O paradoxo fundamental dessa cobertura reside no fato de que, ao tentar denunciar a violência, muitos veículos e usuários acabam por reproduzir a mesma lógica de terror que pretendiam criticar. A imagem do drone sobre os corpos na Praça São Lucas, embora possa ser justificada pelo impacto jornalístico, opera no imaginário coletivo como uma confirmação do poder discricionário sobre a vida e a morte nas periferias.

O jornalismo enfrenta aqui seu dilema mais fundamental: como relatar o horror sem se tornar cúmplice dele? A ética jornalística, como refletida em códigos de conduta de entidades do setor, pressupõe um compromisso inegociável com a verdade e o interesse público, o que inclui a responsabilidade no tratamento de informações e imagens. No entanto, a corrida por cliques e a saturação de conteúdo nas redes sociais muitas vezes sobrepõem a sensacionalismo à sensibilidade.

A divulgação de vídeos de câmeras policiais, supostamente para justificar a carnificina, e a priorização de imagens chocantes de corpos em detrimento de uma análise aprofundada do contexto social e político da violência, representam um desvio do papel social do jornalismo. A prática não apenas desrespeita a dor dos envolvidos, como também normaliza a violência extrema perante a sociedade, dessensibilizando o público e tornando aceitável o inaceitável.

A questão que se coloca é: até que ponto a reprodução massiva dessas imagens não corrói os fundamentos éticos do jornalismo e transforma a morte em commodity digital? Quando o macabro vira conteúdo, a linha entre denúncia e espetacularização torna-se perigosamente tênue.

Assistir aos vídeos daquela manhã de corpos desvelados e ouvir os depoimentos desesperados dos moradores é ser confrontado com a realidade crua de um Estado que, ao mesmo tempo que executa, permite que a execução seja espetacularizada. O desafio que se coloca para o jornalismo é narrar a dor sem explorá-la, denunciar a violência sem reproduzi-la e honrar a memória das vítimas sem transformá-las em números ou imagens macabras.

O caminho é focar nas histórias de vida, no contexto social que permite tais massacres e na cobrança por respostas institucionais. Só assim a cobertura jornalística poderá se diferenciar ética e moralmente do caráter macabro das próprias ações que se propõe a noticiar, cumprindo seu verdadeiro papel: informar, contextualizar e, acima de tudo, humanizar.

Enquanto a sociedade brasileira não confrontar o fato de que a divulgação indiscriminada de imagens de cadáveres - por mais "justificável" que pareça no calor dos fatos - corrói nossa humanidade compartilhada, estaremos fadados a repetir, nas telas, a mesma violência que condenamos nas ruas.

Com informações de G1, O Globo, UOL, Redalyc, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e X.com. ■