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Os 121 (ou 144) da Penha e do Alemão
Operação de guerra nos Complexos de Alemão e da Penha trazem paradoxos sobre a necessidade de entrada do Estado em localidades conflagradas pelo tráfico, contra a narrativa de alta letalidade das ações policiais
Editorial
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■   Bernardo Cahue, 31/10/2025

Rio de Janeiro, 28 de outubro de 2025. Uma data que seria parcialmente de confraternização; não fosse o calendário alterado pelo Governo do Estado e pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, seria feriado do Servidor Público. Logo nas primeiras horas da manhã, 2500 servidores públicos das polícias Civil e Militar e do Ministério Público saíram para cumprir determinações de prisões nos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, no âmbito do combate ao tráfico de drogas e demais crimes associados. Quatros deles nunca mais voltariam para as suas residências: por mais que tenham chegado com vida ao Hospital Getúlio Vargas, de lá foram direto para o IML.

Mesmo no contexto das comemorações e folgas adiadas - tanto a Prefeitura quanto o Estado decretaram a transferência do recesso funcional para o dia 31 - de fato, alguns serviços foram forçosamente encerrados. Escolas, postos de saúde e clínicas da família da região da Penha, Bonsucesso, Ramos, Olaria e Brás de Pina foram diretamente impactados com a interrupção do serviço desde as primeiras horas da manhã. À tarde, foi bem diferente: quase 100 dos 166 bairros cariocas foram impactados com o fechamento mais cedo de repartições públicas e demais estabelecimentos, como mercados e bancos, e falta de transporte público devido ao recolhimento dos ônibus no âmbito das empresas da Rio Ônibus. Em especial, uma comemoração marcada pela Prefeitura do Rio para celebrar o Dia do Servidor Público no Centro Administrativo São Sebastião (sede da Prefeitura) acabou esvaziada, tanto pela não liberação dos servidores por suas repartições - e olha que falamos aqui da mesma Prefeitura do Rio - quanto pela proposta de encerrar os trabalhos mais cedo, tendo em vista a escacez de transporte público e bloqueios das ruas pós-operação na Penha e no Alemão.

O motivo? Retaliação do tráfico de drogas. Das 1724 favelas do Estado do Rio, 763 estão na capital. Em 2024, mais de 500 estavam nas mãos do Comando Vermelho - mais de mil no Estado. A facção foi diretamente impactada pela Operação Contenção e cujo QG principal fora "estourado" pelas forças de segurança pública. O modus operandi de membros da facção foi principalmente o sequestro de ônibus para fechamento das vias com retenção de suas chaves, numa tentativa de deslocar as forças de segurança da operação - outras ações incluíram barricadas com caçambas de lixo incendiadas, sequestro de caminhões e pedradas direcionadas às vias e contra as polícias - como ocorreu no bairro do Rocha e no fim da Linha Amarela, altura da Cidade de Deus.

Com a manobra de prevenção das empresas da Rio Ônibus, recolhendo seus carros em comboio para suas garagens, a população foi obrigada a peregrinar a pé pela cidade, aumentando ainda mais a sensação de abandono e domínio estabelecido pelo poder de uma facção do tráfico. Trens e metrôs foram diretamente impactados com o aumento do fluxo de pessoas tentando no desespero voltar para casa.

Durante esse período de tentativa de normalização, principalmente pelo Prefeito Eduardo Paes - que mobilizou a MobiRio na continuidade da operação do BRT - os números da Operação Contenção já chocavam: 64 mortos, incluindo os dois policiais da Polícia Civil e mais dois do BOPE. Os números, segundo a imprensa, constavam do número de entradas no Hospital Getúlio Vargas. Já estávamos próximo das 16 horas do dia do Servidor Público de 2025 quando os números vieram à tona. Já era, em relação a outras operações policiais, a ação mais violenta da história do Rio de Janeiro. Às 21 horas, a notícia de mais um tiroteio no Complexo do Alemão irrompeu os noticiários, e a expectativa à noite já era de aumento dos números da operação.

Durante a madrugada, uma kombi chegava ao Hospital Getúlio Vargas com os primeiros seis corpos trazidos por moradores da região. Os 64 já eram 70 neste momento, mas não fizeram parte da contagem oficial, nem do Estado e sequer da imprensa. Já na parte da manhã, a Praça São Lucas na Penha amanheceu com outros 44 corpos enfileirados, que chegaram a 72 na parte da tarde. No total, 144 ocorrências de morte, supostamente em todo o dia 28 - dia da Operação Contenção. Alguns, analisados por moradores e por uma funerária, com marcas de amarras por cordas e execução com tiros na nuca, facada nas costas e rostos desfigurados, configurando em tese execuções sumárias.

As reações foram diversas. O governador Claudio Castro anunciou oficialmente 121 mortos dos 144 corpos, e culpabilizou o Governo Federal pela falta de integração da segurança pública. O Ministro da Justiça Ricardo Lewandowski sinalizou que não recebeu nenhum pedido de Castro, dando a entender que o governador não seguiu os ritos legais para participação da Força Nacional de Segurança - os pedidos do Governo do Estado teriam "pulado etapa" e seguido direto para o Ministério da Defesa. Parlamentares pediram a prisão preventiva do governador no dia seguinte, pela alta letalidade da operação ter configurado ações que extrapolaram os parâmetros da legalidade pela polícia. Protestos seguiram na porta do Palácio Guanabara, em Laranjeiras, e seguem sendo marcados por diversas entidades. Por fim, neste dia 30, o Deputado Otoni de Paula (MDB-RJ) expôs em plenário federal que quatro dos mortos seriam membros de sua igreja e não teriam relação com o tráfico de drogas. A ONU, através do seu secretário-geral, expressou seu "horror" nos meios de comunicação internacionais ainda com os primeiros números divulgados.

No âmbito da política de execuções pelas forças de segurança pública, mesmo o expressivo número de 121 pessoas anunciado pelo Estado assusta: dez mortes a mais do que na tragédia do Carandirú em 1992, que marcou a história do complexo prisional e teria sido fator motivador principal para a criação da facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC). No âmbito dos números não-oficiais, os 144 corpos configuram uma morte a mais do que o dia mais letal em dois anos de conflito na Faixa de Gaza: em 16 de maio de 2025, 143 vidas foram ceifadas no total em diferentes áreas da unidade palestina, entre bombardeios aéreos e ações em terra do exército israelense.

No âmbito jornalístico, não nos basta simplesmente cultivar a cultura blazé da cobertura. Apesar do número expressivo, sabemos que o impacto de uma ação policial desastrada - que inclusive gerou repercussão mundial - é uma mancha na história da cidade, do Estado e do país, tão vermelha (de sangue jorrado) quanto o nome da facção impactada e o alerta da sociedade. As fotos do G1 e do Jornal O Globo sobre a "exposição de cadáveres" na Praça São Lucas - que por sua vez, eram trazidos pelos moradores, em protesto contra a ação policial desproporcional ou pela razão de não aguardar a boa vontade do poder público na realização da perícia policial com diversos corpos apodrecendo na mata - remetem aos áureos tempos de "banho de sangue encadernado" dos jornais Povo do Rio e O Dia carioca, e Diário Popular e Notícias Populares paulistanos, em uma verossimilhança autêntica de divulgação do macabro - sabe-se lá se como alerta, perplexidade ou exposição de "troféus" aos que torcem pela segurança pública, não importa agora. As fotos acabaram republicadas em outros sites, muitas das vezes rompendo com a barreira do próprio manual de prática jornalística - a gente sabe, no meio, o objetivo escancarado pela audiência. O alerta vermelho também está no âmbito jornalístico: enquanto houver espetacularização do horror, novos números vão aparecer - quer queira, quer não, quantitativos impressionam, impulsionam e viralizam, na mais nova dinâmica internauta. E o Estado do Rio como entidade, na sua mais pura "inocência", também utiliza o jogo: estamos a doze meses das eleições ao Governo do Estado e da Presidência da República.

No mais, números são apenas números, acima de memórias, histórias e vidas ceifadas por uma guerra particular. Triste isso. ■