Relatos incluem violência sexual com objetos, ataques de cães, privação extrema e amputações por negligência médica; ONU e entidades de direitos humanos apontam para uma política de Estado
Ibrahim Salem, um barbeiro palestino de 34 anos, passou oito meses detido por Israel sem acusação formal. Sua descrição do centro de detenção de Sde Teiman, no deserto de Negev, é direta: “Foi quando eu soube que estava começando minha jornada para o inferno”. O relato de Salem, que inclui ter sido estuprado com um bastão por soldados durante um interrogatório, é um entre cento que detalham um sistema de tortura física, psicológica e sexual contra palestinos detidos desde o início da guerra em Gaza.
Investigação da CNN com base em testemunhos de ex-detentos e denunciantes israelenses que trabalharam no local revela um centro projetado para a desumanização. As práticas descritas, agora documentadas também por entidades como a ONU, Anistia Internacional e B'Tselem, vão desde espancamentos e privação de sono até violência sexual institucionalizada e negligência médica grave, que levaram a amputações.
O inferno de Sde Teiman: relatos da violência sexual e tortura
Os depoimentos coletados por veículos de imprensa e organizações de direitos humanos convergem para um quadro de crueldade sistemática em Sde Teiman, uma base militar convertida em centro de detenção. Os abusos começavam na captura, com detidos sendo transportados amontoados em caminhões, algemados, vendados e apenas de roupa íntima.
Abuso sexual como método: A violência sexual é uma constante nos relatos:
- Ibrahim Salem descreve ser forçado a ficar nu, ter um detector de metais passado em suas partes íntimas e, após ser agachado pela dor, ser estuprado por trás com um bastão por soldados.
- Um vídeo vazado de câmeras de segurança de Sde Teiman, obtido pelo Canal 12 de Israel, mostrou soldados escolhendo um detido entre dezenas e levando-o para atrás de um escudo, onde ele teria sido estuprado. A vítima foi hospitalizada com ferimentos no reto.
- Um relato coletado pela B'Tselem descreve um detento sendo jogado nu sobre outros prisioneiros, enquanto um guarda tentava enfiar uma cenoura em seu ânus e outros filmavam a cena com celulares.
- Ex-detentos também relataram à BBC terem sido atingidos nos genitais com detectores de metal durante revistas humilhantes.
Tortura física e psicológica generalizada: Os métodos de tortura incluem:
- Espancamentos brutais: Por falar ou se mover, detidos eram agredidos até ter dentes e ossos quebrados.
- Ataques com cães: Soldados soltavam cachorros para atacar e aterrorizar os detidos, incluindo relatos de cães usados para violação sexual.
- Privação sensorial e de necessidades básicas: Os homens eram mantidos vendados e algemados constantemente, proibidos de falar ou se mover, forçados a posições estressantes e privados de sono com luzes acesas e música alta.
- Humilhação religiosa e psicológica: Eram forçados a amaldiçoar o Hamas, seus líderes, e até suas próprias mães. Em alguns casos, eram obrigados a beijar a bandeira de Israel e cantar o hino nacional.
Negligência médica, amputações e mortes sob custódia
Um dos aspectos mais chocantes revelados pelos denunciantes israelenses que trabalharam em Sde Teiman diz respeito às condições do hospital de campo anexo à instalação. Lá, detidos feridos eram algemados a camas, mantidos nus ou apenas com fraldas, e alimentados por canudos.
Amputações evitáveis: A falta de cuidado médico adequado teve consequências devastadoras:
- Médicos da instalação relataram que a algemação constante causava ferimentos graves nos pulsos, que, sem tratamento, evoluíam para infecções que exigiam amputação de mãos.
- Sofian Abu Selah, de 43 anos, teve a perna amputada após uma infecção não tratada. Ele relatou que, de volta ao centro de detenção após a cirurgia, foi punido por soldados que o obrigaram a se equilibrar na perna saudável por 30 minutos.
Mortes em custódia: O número de palestinos que morreram sob custódia israelense desde outubro é alarmante:
- Um relatório da B'Tselem de agosto de 2024 listou pelo menos 66 mortes de detentos.
- O Escritório de Direitos Humanos da ONU afirmou que pelo menos 53 palestinos morreram em instalações militares e prisões israelenses.
- Em junho, as Forças de Defesa de Israel (IDF) informaram ao jornal Haaretz que investigavam a morte de 40 detentos, 36 deles apenas no campo de Sde Teiman.
A estrutura legal que permite os abusos: A Lei dos Combatentes Ilegais
Esta máquina de detenção e abuso opera sob um arcabouço legal israelense que suspende garantias fundamentais: a Lei de Detenção de Combatentes Ilegais. Aprovada em 2002 e invocada em massa após 7 de outubro, essa lei permite que o exército israelense :
- Detenha qualquer pessoa de Gaza por suspeita de envolvimento em hostilidades, sem apresentar evidências ou acusação formal.
- Mantenha o detido incomunicável por até 45 dias inicialmente, sem acesso a um advogado ou revisão judicial.
- Renove a detenção indefinidamente em audiências judiciais que organizações de direitos humanos descrevem como “farsas”, onde a defesa não tem acesso às “provas” secretas.
Mais de 4.000 palestinos de Gaza foram detidos sob esta lei desde o início da guerra, segundo o Comitê Público Contra a Tortura em Israel (PCATI). A Anistia Internacional afirma que a lei cria um “buraco negro virtual” que facilita a tortura e os desaparecimentos forçados.
Respostas das autoridades e condenação internacional
Diante das denúncias, as respostas oficiais israelenses variam entre a negação genérica e a abertura de investigações pontuais:
- As Forças de Defesa de Israel (IDF) afirmam que “garantem uma conduta adequada com os detidos” e que qualquer alegação de má conduta é examinada. Elas rejeitam acusações de abuso sistemático.
- Em maio, após a investigação da CNN e o vazamento do vídeo de estupro, as IDF prenderam 10 soldados por suposto abuso de um detido em Sde Teiman. Até agosto, cinco haviam sido libertados e cinco estavam em prisão domiciliar.
- O Serviço Prisional de Israel (IPS) disse não ter conhecimento de alegações de abuso em suas instalações.
A comunidade internacional, no entanto, elevou o tom das críticas:
- Um comitê da ONU contra a tortura expressou preocupação com relatos de que Israel opera uma “política de Estado de facto de tortura organizada e generalizada”.
- O Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos, Volker Türk, condenou os “atos terríveis” e afirmou que o tratamento descrito viola claramente o direito internacional humanitário.
- A organização israelense B'Tselem publicou um relatório em agosto intitulado “Bem-vindo ao inferno”, concluindo que as prisões se transformaram em “campos de tortura de facto” sob a direção do ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir.
Enquanto as investigações militares israelenses seguem seu curso de forma limitada, os sobreviventes como Ibrahim Salem tentam reconstruir suas vidas. “Parte da minha tortura foi poder ver como as pessoas estavam sendo torturadas”, disse outro ex-detento, o médico Mohammed al-Ran, após ter sua venda removida. Para as organizações de direitos humanos, a evidência é incontornável: a tortura deixou de ser um excesso ocasional para se tornar um procedimento operacional padrão dentro de um sistema projetado para punir coletivamente e extrair informação a qualquer custo.
Com informações de CNN Brasil, BBC, O Globo, UOL, Amnesty International e OHCHR (ONU) ■