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Os dois Brasis de uma semana emblemática
Na semana que marca o feriado nacional da Consciência Negra, a crítica pela indicação por Lula de Jorge Messias ao invés de uma "ministra negra" ao STF serve de cortina de fumaça para esconder a metralhadora que invadiu uma creche de São Paulo em retaliação a uma atividade cultural afro para crianças
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■   Bernardo Cahue, 21/11/2025

Em uma semana que deveria ser dedicada à reflexão sobre a desigualdade racial no Brasil, dois eventos emblemáticos, aparentemente desconexos, ilustraram a profundidade do abismo que persiste na sociedade. Em Brasília, o presidente Lula formalizou a indicação de Jorge Messias, um homem branco e evangélico, para o STF, ignorando apelos históricos por uma ministra negra. Simultaneamente, em São Paulo, policiais militares invadiam uma creche com armas em punho para intimidar educadoras que realizavam uma aula sobre culturas africanas. Esses episódios, separados por quilômetros, estão unidos por um fio condutor: a resistência de setores conservadores em abrir mão de privilégios e o uso de estratégias de distração que ofuscam debates fundamentais.

Uma Corte para poucos: a indicação no Planalto

A escolha de Jorge Messias para suceder o ministro Luís Roberto Barroso no STF foi recebida com frustração por parte da base progressista do governo. Um conjunto de entidades do sistema de Justiça divulgou uma carta pública pedindo a Lula que indicasse uma mulher, listando treze nomes de juristas consideradas aptas para o cargo. Para esses grupos, a nomeação de uma mulher negra não é uma mera cortesia simbólica, mas uma condição para uma democracia substantiva, que permita que decisões sobre temas como violência policial, saúde reprodutiva e direitos das minorias sejam tomadas com um olhar mais próximo das realidades da maioria da população.

No entanto, os cálculos políticos pareceram falar mais alto. A indicação de Messias é vista por mais críticos como um aceno à bancada cristã, uma frente parlamentar que reúne evangélicos e católicos e que enxerga no atual advogado-geral da União um aliado para avançar pautas antiaborto no STF. Apesar da característica pessoal religiosa do indicado, Messias é visto por juristas como um servidor público com lealdade política, com destaques para coerência e diálogo constante com pautas populares, características profissionais que o aproximam muito mais das estratégias governistas do que de qualquer bancada parlamentar.

O ataque à educação antirracista: a invasão no chão da escola

Enquanto o debate sobre representatividade ocorria no planalto, o chão de uma escola na zona oeste de São Paulo era palco de um ataque direto à educação antirracista. Na última quarta-feira (12), quatro policiais militares, um deles armado com uma metralhadora, invadiram a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Antônio Bento. A ação foi um desdobramento de uma denúncia feita por um pai, que também é sargento da PM e evangélico, um dia após ele ter ido à escola cobrar explicações sobre uma aula que celebrava o Dia da Consciência Negra e se opor à atividade pedagógica, chegando a rasgar desenhos das crianças, incluindo o de sua própria filha de 4 anos.

A aula em questão era baseada no livro "Ciranda de Aruanda", de Liu Olivina, e ensinava sobre orixás de forma lúdica, em total conformidade com a Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira nas escolas. Os policiais, no entanto, intimidaram a diretora e uma funcionária por cerca de 20 minutos, gerando pânico no ambiente destinado a crianças de 4 a 6 anos.

O ANDES-SN (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior) emitiu uma nota repudiando veementemente a ação, classificando-a como um "verdadeiro abuso de poder da polícia" e uma violência guiada por um "princípio neoconservador-fascista de intolerância ao diferente". A Corregedoria da PM abriu uma investigação para apurar a conduta dos agentes.

A cortina de fumaça e os dois projetos de país

Os episódios da indicação de Messias e da invasão à creche Antônio Bento não são isolados. Eles refletem um contexto mais amplo de avanço de uma agenda conservadora e da aplicação de uma "cortina de fumaça" sobre temas fundamentais. Essa expressão, usada para descrever táticas de desinformação e distração, foi abordada em análise que mostra como narrativas podem ofuscar verdades objetivas, um mecanismo que não é diferente do observado na política brasileira recente.

Enquanto a discussão nacional se concentrava em nomes para o STF, um ato de violência institucional contra a implementação de uma lei antirracista crucial passava relativamente despercebido. A "cortina de fumaça" nesse caso é dupla: ofusca tanto a demanda por diversidade no Judiciário quanto a resistência violenta à implementação de políticas de igualdade racial na educação.

Esses eventos revelam dois projetos de Brasil em rota de colisão. De um lado, um projeto que busca ampliar os espaços de poder para incluir a diversidade racial e de gênero do país, e que enxerga a educação como ferramenta de combate ao racismo estrutural. De outro, um projeto que se apoia em uma visão de sociedade majoritariamente branca, masculina e conservadora nos costumes, e que não hesita em usar de sua influência política e até de força policial para manter seus privilégios e impor sua visão de mundo. A semana da Consciência Negra de 2025 deixa claro que, mais do que uma data simbólica, a luta pela igualdade racial continua sendo uma batalha real e urgente em todas as esferas, do topo do Judiciário à sala de aula da educação infantil.

Com informações de: Agência Pública, Folha de S.Paulo, G1, O Globo, Brasil Fora da Caverna, CNN Brasil, Defensoria Pública do Estado do Ceará, Capricho, ANDES-SN. ■