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Um caso ocorrido em uma escola municipal de São Paulo, na véspera do feriado da Consciência Negra, expõe as feridas abertas do racismo religioso e coloca em xeque os limites da atuação policial no ambiente escolar. A presença de policiais militares fortemente armados para investigar uma atividade pedagógica sobre cultura africana gerou crise e levou o Ministério Público a abrir apurações.
O episódio aconteceu na EMEI Antônio Bento, na zona oeste de São Paulo. Tudo começou quando o pai de uma aluna, que é um soldado de 1ª Classe da Polícia Militar, questionou uma atividade em que as crianças fizeram desenhos baseados no livro infantil "Ciranda em Aruanda". O desenho de sua filha trazia o nome "Iansã", um orixá das religiões de matriz africana. Inconformado, ele alegou que a escola estaria obrigando a criança a ter "aula de religião africana". No dia anterior à ação policial, este mesmo pai havia voltado à escola, rasgado o desenho da filha e discutido com a direção.
No dia seguinte, ele acionou a Polícia Militar. De acordo com testemunhas, quatro policiais, um deles portando uma metralhadora, adentraram a unidade escolar. A Secretaria de Segurança Pública (SSP) confirmou que o armamento faz parte do equipamento individual dos agentes. A diretora, Aline Aparecida Floriano Nogueira, relatou que foi coagida e interpelada pela equipe por aproximadamente 20 minutos, mesmo tendo explicado que a atividade cumpria o currículo oficial. Um representante do conselho de pais afirmou que a ação deixou crianças desesperadas e que o clima foi de grande intimidação.
O ocorrido não é um incidente isolado, mas um reflexo de um conflito maior. Dois fatores centrais influenciaram o desenrolar dos fatos:
As consequências da ação policial foram imediatas e se multiplicaram:
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece as diretrizes para o Ensino Religioso no Brasil, fundamentando-o nos princípios da laicidade, liberdade de crença e respeito à diversidade. Sua abordagem é explicitamente não confessional, o que significa que o componente curricular não deve promover ou privilegiar uma crença religiosa específica, mas sim proporcionar aos alunos conhecimentos sobre a pluralidade de manifestações religiosas, entendendo seu papel cultural e social. O objetivo é formar cidadãos éticos e tolerantes, capazes de compreender criticamente as diferentes tradições que compõem o tecido social brasileiro.
No tratamento das questões religiosas, a BNCC incorpora o estudo das narrativas fundadoras de diversas culturas sob a ótica das manifestações religiosas e dos mitos. Esse enfoque permite equiparar, em importância e valor pedagógico, as narrativas de tradições variadas – como as mitologias grega, romana, egípcia e asiática – às das religiões de matriz africana e afro-brasileira. Unidades temáticas como "Crenças religiosas e filosofias de vida" e "Narrativas religiosas" orientam que os alunos compreendam os mitos e tradições religiosas como formas de narrar histórias que explicam concepções de mundo, a origem das divindades e a relação do ser humano com o transcendente em diferentes cosmovisões .
Ao enquadrar essas narrativas no conceito de "mito", a BNCC não as reduz ou as banaliza; antes, as situa como estruturas narrativas fundamentais que organizam a percepção de povos sobre a origem do mundo, o sentido da vida e a passagem do tempo. Trata-se de um gesto pedagógico e político que visa superar uma visão eurocêntrica do conhecimento, colocando lado a lado, por exemplo, o itan (narrativa) do orixá Iansã ou Iroko e o mito de Cronos, da Grécia Antiga. Essa prática está em consonância com a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, exigindo que as escolas apresentem os aspectos positivos e filosóficos dessas culturas, indo além do enfoque na escravidão.
Portanto, a abordagem da BNCC ao tratar as narrativas religiosas como mitologias equivalentes tem um profundo valor formativo. Ela promove a alfabetização cultural e o reconhecimento da diversidade, permitindo que os alunos percebam que existem múltiplas e válidas formas de entender e explicar o mundo. Dessa forma, a Base contribui para a construção de um ambiente escolar verdadeiramente plural e inclusivo, onde as identidades de todos os estudantes são valorizadas e a convivência respeitosa com as diferenças é incentivada.
Este incidente do Estado de São Paulo vai muito além de uma discórdia pontual. Ele evidencia o abismo entre a lei e sua assimilação pela sociedade, a criminalização de saberes africanos e a violência simbólica e real que persiste contra as manifestações culturais e religiosas negras. No feriado que convida à reflexão sobre a consciência negra, o caso da EMEI Antônio Bento serve como um triste lembrete de que a implementação de uma educação verdadeiramente antirracista ainda é um caminho cheio de obstáculos.
Com informações de: G1, Metrópoles, UOL, O Liberal, Ministério da Educação, BNCC ■