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Dona Canô entendeu Lula. Caetano, até hoje, tenta
Lula anunciou a criação da Universidade Dona Canô em Santo Amaro, homenagem à matriarca baiana que cultivou com ele uma amizade verdadeira, afetuosa e sem interesses
Artigo
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■   Fábio Morais, 10/10/2025

Nesta quinta-feira, 9 de outubro de 2025, durante a inauguração da megafábrica da montadora chinesa BYD em Camaçari, na Bahia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um anúncio carregado de afeto e simbolismo: a criação da Universidade Dona Canô, em Santo Amaro, terra natal da matriarca que se tornou uma das figuras mais queridas do Recôncavo baiano. A fábrica ocupa uma área de 4,6 milhões de metros quadrados, o equivalente a 645 campos de futebol, e deve gerar até 20 mil empregos diretos e indiretos. Lula, emocionado, disse: “A gente vai anunciar logo logo, uma faculdade lá em Santo Amaro, que vai se chamar Universidade Dona Canô, pra homenagear a Bahia.” A frase, simples e sincera, soou como um reencontro entre o presidente e a memória da mulher que ele chamava de amiga.

Claudionor Veloso, a eterna Dona Canô, morreu em 2012 aos 105 anos, depois de viver o suficiente para ver o Brasil mudar e seus filhos se tornarem símbolos da cultura nacional. Mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia, Dona Canô foi admirada por Lula e Marisa Letícia. O carinho era mútuo. Quando recebeu Lula e o governador Jaques Wagner em sua casa, em 2011, a matriarca resumiu a relação com a doçura que a caracterizava: “Lula gosta mesmo de mim. Não há interesse nenhum, é amizade. Foi a melhor visita do Brasil.” O ex-presidente, por sua vez, retribuía com a simplicidade de quem reconhece o valor das pessoas: “Hoje é dia do amigo e decidi visitar uma amiga. Eu tenho um carinho muito grande por Dona Canô.”

A amizade entre Lula e Dona Canô sempre foi um encontro entre sabedoria popular e humanidade genuína. Curioso é observar como o filho mais famoso da matriarca, o genial Caetano Veloso, trilhou caminho oposto na leitura política do país. Caetano, que compôs algumas das mais belas canções da história brasileira, também se tornou especialista em colecionar equívocos ideológicos. Em 2009, protagonizou um dos episódios mais infelizes da sua carreira ao declarar que Marina Silva era “inteligente como Obama, não analfabeta como o Lula, que não sabe falar, é cafona falando, grosseiro.” A declaração escancarou o velho preconceito de classe que o Brasil educado gosta de disfarçar com ironia.

A reação de Dona Canô foi imediata. Aos 102 anos, disse que queria telefonar ao presidente para se desculpar em nome do filho. “Não é possível que ele chamasse Lula de analfabeto, aliás, ele nem teria o direito de falar assim. Ele é apenas um cantor”, afirmou. O gesto materno foi uma lição de grandeza e humildade que Caetano jamais compreendeu.

Mas o cantor sempre tropeçou. À BBC Brasil, em 2006, declarou: “Votar em Lula de novo? De maneira nenhuma. Acho um absurdo votar em Lula de novo.” O “absurdo” venceu as eleições, tirou o Brasil do mapa da fome e entrou para a história como um dos maiores líderes do século. Mais tarde, o compositor tentou corrigir o tom, dizendo que Lula era “bacana, brilhante, mais bem-sucedido que Obama.” Uma espécie de retratação tropicalista que soou mais como tentativa de salvar a própria imagem do que de reconhecer a grandeza do outro.

E quando se achava que o equívoco não podia ficar mais sofisticado, surgiu Nelson Motta, outro representante do “bom gosto” carioca, para defender o amigo com ares de sabedoria. “Não vejo motivo para tanto estupor por dizer que Lula, apesar de fazer ótima administração, é grosseiro, arrogante e bravateiro. É só uma questão de estilo”, afirmou o produtor musical. Nelson, sempre elegante, conseguiu confirmar exatamente o ponto que tentava relativizar. Foi o retrato perfeito da elite que se incomoda com o sotaque do povo, mas aplaude discursos em francês.

Enquanto isso, Chico Buarque seguia sendo o farol. Em 2006, quando parte da intelectualidade nacional se deixava levar pelo antipetismo de salão, Chico dizia à Folha de São Paulo: “Como se fosse uma concessão, deixaram o Lula assumir. Agora sai já daí, vagabundo! É como se estivessem despachando um empregado a quem se permitiu esse luxo de ocupar a Casa Grande.” Chico compreendeu o que Caetano nunca quis enxergar: que Lula é o símbolo da ascensão dos invisíveis, o operário que desafiou o destino e reescreveu a história do Brasil com a autoridade de quem fala a língua do povo.

O tempo passou e Caetano continuou tropeçando. Em 2017, foi visto entre procuradores e juízes em um ato de apoio a Marcelo Bretas, o agora ex-juiz da Lava Jato do Rio, condenado pelo Conselho Nacional de Justiça e inelegível por oito anos por condutas irregulares. Lá estava Caetano, segurando uma faixa que dizia “Tâmo junto, Bretas!”, ao lado daqueles que hoje são reconhecidos como os artífices do maior conluio jurídico-midiático da história recente do país. O mesmo Bretas que tentou beneficiar Wilson Witzel, candidato da extrema direita apoiado por Bolsonaro. Pois é. Ai, ai, Caetano.

Dona Canô, com sua sabedoria despretensiosa, sabia disso melhor que ninguém. Quando repreendeu o filho, ela falava com o coração do Brasil que sente e compreende, e não com o pedestal dos que opinam sobre tudo, mas entendem pouco da vida real.

Às vésperas das eleições de 2026, Caetano Veloso, hoje octogenário, talvez tenha finalmente percebido, ou não (SIC), que o “analfabeto” que ele desprezou foi o homem que salvou o país do massacre da extrema direita e o tirou novamente do mapa da fome. Lula segue firme, generoso e lúcido, com o mesmo afeto com que visitava Dona Canô em Santo Amaro. A mãe teria orgulho. O filho, quem sabe um dia, aprenda a cantar a verdade com o mesmo ouvido com que compõe suas canções. ■