Siga nossas redes sociais
Logo     
Siga nossos canais
   
Quem criou o Hamas?
Da Irmandade Muçulmana ao vácuo político: a gênese do movimento Hamas está intrinsecamente ligada a oito décadas de conflito e ocupação
Editorial
Foto: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/cb/Hamas_Emblem_Flag_White_Variant_with_Colored_Emblem.svg/2560px-Hamas_Emblem_Flag_White_Variant_with_Colored_Emblem.svg.png
■   Bernardo Cahue, 03/10/2025

A pergunta "quem criou o Hamas?" não encontra resposta em um único nome ou organização, mas sim em um complexo tabuleiro geopolítico moldado por quase 80 anos de história. A ascensão do grupo islâmico como uma das principais forças de resistência palestina é inseparável do contexto mais amplo da criação do Estado de Israel em 1948, sua política expansionista e a luta palestina por autodeterminação, simbolizada pelas Intifadas.

O Cenário de Origem: O Nascimento de Israel e a Nakba

O conflito tem suas raízes no final do século XIX, com o surgimento do sionismo, um movimento nacionalista judeu que defendia a criação de um Estado judaico na Palestina histórica, então sob domínio do Império Otomano e, posteriormente, do Mandato Britânico. A perseguição aos judeus na Europa, que culminou no Holocausto, deu urgência a essa demanda. Em 1947, a ONU propôs um plano de partilha da Palestina em dois estados, um judeu e um árabe. Os líderes judeus aceitaram o plano; os árabes palestinos e as nações árabes vizinhas o rejeitaram, argumentando que concedia a maior parte da terra à população judaica, que era minoria na época.

Em 14 de maio de 1948, David Ben-Gurion proclamou a independência do Estado de Israel. No dia seguinte, eclodiu a primeira guerra árabe-israelense. Ao seu término, em 1949, Israel controlava uma área territorial maior do que a prevista no plano da ONU. Cerca de 750 mil palestinos foram forçados a deixar ou fugiram de suas casas no que ficou conhecido como Nakba ( "catástrofe" em árabe), formando uma vasta população de refugiados. A Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, foi anexada pela Jordânia, e a Faixa de Gaza ficou sob administração egípcia.

A Ocupação e a Semente da Resistência Islâmica

O ponto de virada decisivo ocorreu em 1967, com a Guerra dos Seis Dias. Israel capturou e ocupou a Cisjordânia, Gaza, Jerusalém Oriental e as Colinas de Golã. Cerca de um milhão de palestinos ficaram sob controle militar israelense, uma ocupação que perdura até hoje. Foi neste contexto de domínio israelense que as sementes do Hamas foram plantadas.

Desde a ocupação de 1967, Israel tolerou e, em alguns momentos, incentivou ativistas e grupos islâmicos, como a Irmandade Muçulmana e sua organização de caridade, o Mujama al-Islamiya, como um contrapeso à influência secular e nacionalista da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e de sua facção dominante, o Fatah. As autoridades israelenses permitiram que essa rede construísse mesquitas, clubes, escolas e bibliotecas em Gaza, considerando-a inicialmente como uma força social "pacífica" em comparação com os grupos nacionalistas palestinos.

A Primeira Intifada e o Nascimento Formal do Hamas

Em dezembro de 1987, estourou a Primeira Intifada, um levante popular espontâneo da população palestina contra a ocupação israelense, conhecido como a "guerra das pedras". Foi neste momento de ebulição que, a partir da Irmandade Muçulmana e de facções religiosas da OLP, surgiu oficialmente o Hamas (um acrônimo para "Movimento de Resistência Islâmica").

Seu fundador, o xeque Ahmed Yassin, e outros líderes do movimento haviam sido previamente tolerados e até mesmo se reuniram com oficiais israelenses. No entanto, a nova organização adotou uma linha mais nacionalista e militante. Em sua carta de 1988, o Hamas declarou que a Palestina é um patrimônio islâmico que nunca pode ser rendido e que a luta armada para libertá-la do controle israelense é um dever religioso. Isso colocou o grupo em rota de colisão tanto com Israel quanto com a OLP, que, em 1988, reconheceu o direito de Israel de existir.

A Cisjordânia Hoje: A Resistência e a Repressão

Enquanto a atenção global se volta para Gaza, a Cisjordânia vive uma crise profunda e silenciosa. O território, central para qualquer solução de dois Estados, está fragmentado pela expansão de colônias israelenses, consideradas ilegais pela Corte Internacional de Justiça e pela maior parte da comunidade internacional.

Os Acordos de Oslo da década de 1990 dividiram a Cisjordânia em três zonas (A, B e C). A Zona C, que representa 60% do território, permanece sob controle civil e militar total de Israel. Lá, vivem cerca de 300.000 palestinos, enquanto assentamentos israelenses abrigam entre 500.000 e 800.000 colonos. Postos de controle, bloqueios de estradas e o muro de separação restringem drasticamente a movimentação dos palestinos, afetando seu acesso a empregos, saúde e educação.

Após os ataques de 7 de outubro de 2023, as forças israelenses intensificaram as operações na Cisjordânia. Relatórios de organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional, detalham uma situação alarmante:

  • Detenções em massa: Até setembro de 2025, as autoridades israelenses mantinham cerca de 11.040 palestinos presos, sendo que mais da metade estava detida sem acusação ou julgamento formal.
  • Tortura e maus-tratos: Presos palestinos relatam sofrer abusos físicos, psicológicos e violência sexual enquanto sob custódia israelense.
  • Violência de colonos: Ataques de colonos israelenses contra palestinos são frequentes, muitas vezes com a conivência ou participação das forças de segurança.
  • Operações militares: Incursões em campos de refugiados, como Jenin e Tulkarem, tornaram-se comuns, resultando em mortes, ferimentos e deslocamento forçado de civis.

Conclusão: Uma Criação com Múltiplos Autores

Portanto, responder "quem criou o Hamas?" exige uma reflexão multidimensional. O Hamas foi, em sua gênese formal, uma criação de líderes religiosos palestinos ligados à Irmandade Muçulmana, que capitalizaram o descontentamento popular durante a Primeira Intifada. No entanto, sua ascensão foi possibilitada por um contexto específico fomentado pela própria política israelense, que viu no islamismo um contraponto útil ao nacionalismo secular da OLP. Por fim, a ocupação militar contínua, a expansão dos assentamentos e a negação persistente dos direitos nacionais palestinos forneceram o terreno fértil e a justificativa ideológica para que o Hamas crescesse, se armasse e se tornasse a força poderosa e militante que é hoje. A história do Hamas é, em última análise, um capítulo sombrio na história mais longa de um conflito não resolvido.

Com informações de Wikipedia, Amnesty International, BBC, Deutsche Welle, Britannica, Noticias ONU. ■