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A decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de renomear o icônico centro cultural de Washington para incluir seu próprio nome não é um ato de vaidade isolado. Ela se insere em uma estratégia ampla e repetida globalmente: a apropriação de símbolos de legado e memória coletiva por figuras políticas que buscam eternizar seu próprio poder em vida. Essa prática, que encontrou terreno fértil em dinastias políticas brasileiras como Sarney, Magalhães e Cozzolino, vai além da mera homenagem. É uma ferramenta de reescrita da história, de dominação simbólica e de apagamento de adversários, executada com desprezo por procedimentos legais e pela vontade popular.
O processo de renomeação do John F. Kennedy Center for the Performing Arts para "The Donald J. Trump and The John F. Kennedy Memorial Center for the Performing Arts" é um manual de como se consuma uma autohomenagem forçada. A sequência foi metódica:
O ato foi tão abrupto que resultou em detalhes grotescos: as novas letras na fachada não combinam com a tipografia original, criando um efeito visual de remendo. Além disso, ao se autodenominar um "memorial", Trump gerou ridicularização nas redes sociais, onde usuários lembraram que o termo normalmente homenageia figuras falecidas.
A ação sobre o Kennedy Center é a ponta de um iceberg de uma filosofia de governo descrita pela própria Casa Branca como a crença de que "não há nada que ele não possa fazer. Nada, zero, nada". Esta administração age com uma mentalidade de "bulldozer" (trator de esteiras), onde leis e tradições são tratadas como meras sugestões.
No cerne dessa estratégia está um objetivo claro: politizar e subjugar instituições não-partidárias. Trump já afirmou estar "98% envolvido" na escolha dos homenageados anuais do Kennedy Center, rejeitando o que chamou de "wokesters". Após sua tomada de controle, artistas como o produtor de Hamilton Lin-Manuel Miranda cancelaram apresentações, e dezenas de funcionários foram demitidos ou pediram demissão. O resultado foi uma queda nas vendas de ingressos e assinaturas.
A reação mais contundente veio da família Kennedy. Joe Kennedy III, sobrinho-neto de JFK, afirmou que o centro "não pode ser renomeado mais do que alguém pode renomear o Lincoln Memorial". Maria Shriver, sobrinha do ex-presidente, chamou o ato de "além do absurdo", "francamente bizarro" e "obcessivo de um jeito estranho".
Juridicamente, abre-se um impasse. Líderes democratas no Congresso prometem contestar, mas a ação pode ser lenta. O perigo, apontam analistas, é a naturalização do ilícito. Como o professor David Super observou, "a administração não está se importando com as leis a menos que tenha uma perspectiva realista de ser processada". Se o Congresso não agir com força para defender suas próprias leis, a mudança, ainda que ilegal, pode permanecer de facto.
Embora a escala nacional e midiática do caso Trump seja singular, a lógica que o sustenta é dolorosamente familiar no cenário político brasileiro. A prática de batizar obras públicas, pontes, hospitais e aeroportos com os nomes de políticos ainda no exercício do poder – ou de seus familiares – é uma tradão enraizada em diversas dinastias:
Assim como no caso Trump, essas ações raramente passam por um amplo debate público ou por uma consulta desvinculada da máquina partidária. São, em sua essência, decretos do poder, que usam a força do cargo para imprimir uma marca pessoal no espaço coletivo, confundindo deliberadamente a obra pública com propriedade privada e legado familiar.
A saga da renomeação do Kennedy Center e as infinitas autohomenagens de clãs políticos brasileiros revelam mais do que simples narcisismo. Elas expõem uma visão antidemocrática e personalista do poder, onde instituições, leis e a memória histórica são instrumentos maleáveis a serviço da glorificação pessoal. É um projeto que busca substituir a história plural por uma narrativa única, o bem público por patrimônio simbólico privado.
Enquanto sociedades não reagirem com vigor legal e repúdio cívico a essas tentativas de sequestro da memória coletiva, o risco é que a linha entre o líder e o Estado se apague, e que futuras gerações encontrem uma paisagem onde a história começou apenas com a ascensão daqueles que ousaram escrevê-la com o próprio nome.
Com informações de: BBC, Variety, CNN, The Art Newspaper, Yahoo News ■