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Inferno na Terra: quando a morte se torna "opção" para as crianças de Gaza
O vídeo da menina em Gaza, que retrata a morte como uma possível rota de fuga, não é um relato isolado, mas um espelho de uma realidade humanitária catastrófica
Analise
Foto: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQfS60mET028YArJDlZTrEiCR9v46rprY66RA&s
■   Bernardo Cahue, 21/12/2025

Em 2025, a crise na Faixa de Gaza atingiu proporções bíblicas, onde sistemas de saúde desmoronam, a fome se alastra e crianças são as principais vítimas de uma violência implacável. A fala da menina é um sintoma psicológico extremo de um ambiente onde a proteção mais básica da infância — a expectativa de um futuro — foi sistematicamente erradicada.

A Catástrofe Humanitária em Números

A situação no terreno transcende o conceito de crise; é o colapso total da sociedade civil. Dados de agências da ONU pintam um quadro de horror meticulosamente documentado:

  • Fome e Desnutrição: Mais de 500.000 pessoas, um em cada quatro residentes de Gaza, enfrentam condições de fome. Todos os 320.000 crianças com menos de cinco anos estão em risco de desnutrição aguda, com milhares sofrendo de sua forma mais letal. Julho de 2025 foi o mês mais mortal por desnutrição infantil, com 24 crianças nessa faixa etária morrendo, representando 85% de todas as mortes do ano por essa causa.
  • Vítimas Infantis: Relatos indicam que mais de 50.000 crianças foram mortas ou feridas desde outubro de 2023. Em um único fim de semana de maio de 2025, o mundo testemunhou imagens de crianças carbonizadas e desmembradas sendo retiradas dos escombros em Khan Younis, e de uma criança pequena presa em uma escola em chamas em Gaza City.
  • Colapso dos Serviços: Os hospitais, sobrecarregados, lidam com uma média de oito incidentes de massa por dia. A assistência humanitária está em uma fração mínima do necessário: enquanto antes da guerra entravam 500 caminhões de suprimentos diariamente, após um bloqueio quase total, a média caiu para cerca de 30 caminhões da ONU por dia.

Histórias por Trás dos Números: A Perda da Infância

Por trás dessas estatísticas aterradoras, existem rostos e nomes. A menina de seis anos, Ward Khalil, sobreviveu a um ataque aéreo israelense contra uma escola que servia de abrigo em Gaza City. Sua mãe e dois de seus irmãos não tiveram a mesma sorte.

Em seu relato, a pequena Ward descreve: "Quando acordei, havia um grande incêndio, e vi que minha mãe estava morta... Eu andei no fogo para poder escapar. ... Eu estava no fogo, e o teto desabou sobre mim". Seu tio, Eyad al-Sheikh Khalil, reflete sobre o trauma inevitável: "Quando alguém sai de um ataque como este, em uma guerra como esta, o que você espera que uma criança sinta? Claro que ela vai sofrer mentalmente. Estamos todos sofrendo mentalmente".

Esses espaços que deveriam ser de aprendizado e segurança foram transformados em armadilhas mortais. A agência da ONU para refugiados palestinos, UNRWA, relatou que quase três quartos de todos os edifícios escolares em Gaza foram atingidos diretamente por ataques, com 95% tendo sofrido danos.

Pobreza Crônica e o Caminho para o Abismo

A atual catástrofe não surgiu do vácuo. Gaza já era uma sociedade à beira do colapso muito antes do conflito atual. Um estudo de 2017 mostrou que 53% da população de Gaza vivia na pobreza, incluindo mais de 400.000 crianças.

O desemprego era (e continua sendo) um dos mais altos do mundo, e as famílias gastavam até 35% de sua renda apenas com alimentos, um sinal claro de padrão de vida precário. Essa pobreza extrema e a dependência de assistência social criaram uma fragilidade que, sob o impacto da guerra total, desintegrou-se completamente, levando à fome em massa e ao desespero que vemos hoje.

A Análise: A Morte como "Escape" em um Mundo Destruído

A declaração da menina no vídeo — de que a morte pode ser uma opção para "escapar do mundo" — é talvez a denúncia mais devastadora possível contra as condições em Gaza. Ela não fala de medo momentâneo, mas de um desespero ontológico, uma rejeição completa do mundo que os adultos deixaram para ela.

  1. Falha Catastrófica da Comunidade Internacional: Os repetidos apelos de agências como UNICEF e OCHA por cessar-fogo e acesso humanitário seguro têm sido amplamente ignorados. A comunidade internacional testemunha um genocídio em câmera lenta, onde duas das três métricas técnicas para declarar uma fome já foram atingidas, e ainda a ação decisiva falha.
  2. Destruição do Tecido Psicológico: Crianças como Ward Khalil não estão apenas feridas ou com fome; elas testemunharam a violenta morte de seus pais, irmãos e amigos. Elas vivem sem segurança, sem escola, sem rotina e sem a esperança de um amanhã melhor. Quando o mundo se reduz a escombros, fogo e luto incessante, a perspectiva da morte pode se perverter em uma ideia de paz.
  3. A Moralidade do Testemunho: Vídeos como o citado, e as reportagens de Al Jazeera que mostram as consequências brutais dos ataques, cumprem uma função crucial: eles forçam o mundo a ver. Eles transformam estatísticas abstratas de "crianças mortas" em histórias individuais de horror, desafiando a desumanização e a indiferença.

A conclusão é inescapável: Gaza deixou de ser um cenário de conflito para se tornar um laboratório do sofrimento humano extremo. A fala daquela menina é um grito de alerta final. Ela sinaliza que, para uma geração inteira de crianças, a linha entre a vida e a morte não é mais definida pelo desejo de viver, mas pela ausência total de algo pelo qual valha a pena viver. Restaurar essa razão para viver exige mais do que ajuda humanitária; exige um fim imediato da violência e um compromisso internacional real com a reconstrução de um futuro que hoje parece intencionalmente negado.

Com informações de: OCHA, UNICEF, Al Jazeera ■