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A política dos números: como métodos inflam estimativas de público e distorcem a realidade
A ausência de uma metodologia oficial e transparente para contar multidões transforma estimativas de público em campo de batalha política, com diferenças que chegam a ser maiores que vinte vezes para um mesmo evento
Analise
Foto: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcTUfSws49-0fTgeSdxtqt-9Gjb_bUfhNv0Qrg&s
■   Bernardo Cahue, 15/12/2025

Na data de 21 de setembro de 2025, um ato público mobilizado para diversas cidades brasileiras mostrou que, mais do que números, a técnica de contabilidade de presença pública em atos sempre foi um ato de cumplicidade política. Como poderia, por exemplo, um determinado número de quarteirões inteiramente ocupados em uma mesma rua, em momentos distintos e por razões diferentes, serem ocupados por "apenas" 40 mil pessoas em um dia e, de forma mágica, por incríveis 2,1 milhões com menos do que o dobro desses quarteirões ocupados?

O Imprensa Ética, de forma provocativa ao "dito" método Jacobs (veja abaixo a explicação), utilizou propositalmente dados estimados em atos anteriores pelas Polícias Militares de São Paulo e do Rio de Janeiro para um cálculo que surpreendeu até mesmo a redação deste periódico. No total, seguindo a mesma metodologia, 1,3 milhão de pessoas estiveram nas ruas do Brasil nos atos contra a anistia de 21 de setembro de 2025; 800 mil pessoas somente na orla de Copacabana, no Rio de Janeiro.

A contagem de pessoas em eventos públicos a céu aberto é, no Brasil, mais do que uma questão técnica - é um ato político. A inexistência de um protocolo oficial e amplamente reconhecido permite que números drasticamente diferentes sejam divulgados para um mesmo evento, dependendo de quem faz a contagem e de seus interesses. Essa falta de padrão ficou evidente em casos como o show da cantora Lady Gaga em Copacabana, onde estimativas extravagantes de 2,1 milhões de pessoas circularam, e em manifestações políticas na Avenida Paulista, onde contagens por inteligência artificial apontaram 45 mil pessoas, enquanto cálculos amadores nas redes sociais falavam em 1,2 milhão. Essa disparidade não é acidental; é sintoma de um sistema onde o número de corpos nas ruas é tratado como moeda de validação política.

A Raiz do Problema: A Falta de Padronização e o Método Flexível

Em eventos sem entrada controlada, como shows gratuitos ou manifestações, não há catracas para fornecer um número exato. O método mais comum para estimativa é o criado pelo jornalista Herbert Jacobs na década de 1960. De forma simplificada, ele consiste em calcular a área ocupada, estimar uma densidade média de pessoas por metro quadrado e multiplicar esses valores. A precisão, no entanto, depende totalmente do rigor de quem aplica a fórmula: a área considerada está correta? A densidade usada é realista para a cena observada?

É justamente nessa flexibilidade que mora o problema. Para um ato na Avenida Paulista, um vídeo que circulou nas redes considerou que toda a extensão da avenida (18 quarteirões) estava totalmente ocupada, usando uma largura incorreta da via, e chegou a 1,2 milhão de pessoas. Na realidade, a manifestação ocupou apenas cerca de três quarteirões, e imagens aéreas mostravam áreas com densidade variável e espaços vazios. Um cálculo similar, que apontasse 2,1 milhões para um show em Copacabana ocupando 15 quarteirões, provavelmente cometeria os mesmos erros: superestimar a área efetivamente tomada e assumir uma densidade de aglomeração física impossível de se sustentar em um longo evento.

As Metodologias em Disputa: Do Olho Humano à Inteligência Artificial

Enquanto organizadores de eventos e atores políticos têm incentivo para superestimar números, e a polícia pode ter tendência a subestimá-los, veículos de imprensa e institutos de pesquisa tentam estabelecer metodologias mais confiáveis, ainda que diferentes entre si.

  • Método de Jacobs Aplicado por Veículos de Imprensa: Meios como Poder360 e Datafolha utilizam versões apuradas do método. Eles delimitam a área ocupada com auxílio de ferramentas como Google Earth, dividem a região em setores de densidade diferente (baixa, média, alta) baseados em imagens aéreas, e aplicam fatores de multiplicação distintos para cada setor. Para um ato em setembro de 2024 na Paulista, o Poder360 estimou 58 mil pessoas, enquanto o Datafolha, em abril de 2025, projetou 55 mil para outro evento.
  • Contagem por Inteligência Artificial (Monitor da USP): O Monitor do Debate Político da USP adota uma técnica diferente. Ele utiliza fotografias aéreas tiradas por drones e submete essas imagens a um software de inteligência artificial treinado para identificar e contar cabeças individualmente. O coordenador do projeto, Pablo Ortellado, afirma que a ferramenta foi especificamente treinada com imagens de manifestações no Brasil, reduzindo sua margem de erro para cerca de 12%. Para os mesmos eventos, o Monitor tende a apresentar números menores, como 44,9 mil no lugar dos 55 mil do Datafolha.

O Caso do Show em Copacabana: Um Exercício de Realismo Numérico

Colocar a estimativa de 2,1 milhões em perspectiva exige uma comparação com números verificados. O método de Jacobs, bem aplicado, considera que uma densidade muito alta, como 4 pessoas por m², é algo apertado e sustentável apenas em pontos específicos de aglomeração máxima.

  • Um ato com 40 mil pessoas ocupando integralmente 7 quarteirões indica uma densidade média considerável.
  • Um show ocupando 15 quarteirões teria, portanto, pouco mais que o dobro da área. Mesmo assumindo uma densidade alta e uniforme (o que é raro em eventos longos), um público na casa das dezenas ou baixas centenas de milhares seria matematicamente plausível.
  • Alcançar 2,1 milhões exigiria uma densidade física absurda e constante em toda a área, um cenário irreal para um show de várias horas. A título de comparação, o réveillon de Copacabana, que ocupa uma orla extensa e é um dos maiores do mundo, costuma ter estimativas oficiais entre 2 e 3 milhões de pessoas – um evento de proporções excepcionais e com logística única.

A divulgação de um número como 2,1 milhões, sem a apresentação clara de metodologia, fotos aéreas ou dados brutos, se enquadra mais na esfera da propaganda do que da medição técnica.

Consequências: A Desinformação e a Perda de Parâmetro Democrático

A banalização de números inflados tem consequências graves para o debate público. Primeiro, ela alimenta a desinformação, criando uma sensação artificial de massividade que pode influenciar a cobertura jornalística e a percepção popular. Segundo, esvazia o significado real da mobilização social. Quando todos os eventos parecem reunir "milhões", perde-se a capacidade de distinguir entre uma adesão moderada e um apoio realmente massivo.

Por fim, e mais criticalmente, transforma um dado que poderia ser um termômetro democrático – o tamanho do engajamento popular em causas públicas – em munição para guerras de narrativa. A solução, como apontado até mesmo na Wikipedia sobre o assunto, passaria pela divulgação transparente: tornar públicos os métodos, os dados brutos (como as fotos aéreas) e os cálculos intermediários. Enquanto isso não for prática comum, a pergunta "quantos eram?" continuará a ser respondida não com um número, mas com um reflexo dos interesses de quem está contando.

Com informações de Wikipédia, Estadão Verifica, Poder360, Folha de S.Paulo.■