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O milagre da subnotificação estadual na batalha das contagens
Enquanto o governo celebra "sucesso" com 121 mortos, relatos de moradores e imagens de corpos em uma praça revelam um abismo de versões sobre a operação mais letal da história do estado
Cidades
Foto: https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/07/2025/10/29/moradores-levam-veiculo-com-mortos-para-hospital-getulio-vargas-1761723913392_v2_900x506.jpg.webp
■   Bernardo Cahue, 29/10/2025

A megaoperação policial batizada de "Contenção", realizada no dia 28 de outubro de 2025 nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, não só se tornou a mais letal da história do estado, como gerou uma crise de credibilidade sobre os números reais de mortos. O governo estadual confirmou oficialmente 121 vítimas fatais, sendo 4 policiais e 117 "suspeitos". No entanto, relatos de moradores e a própria cena de dezenas de corpos sendo transportados e expostos publicamente sugerem uma contagem potencialmente maior, levantando críticas sobre transparência e a conduta da ação.

Os números oficiais passaram por várias revisões, criando confusão e desconfiança. Inicialmente, o governo divulgou um balanço de 64 mortos, incluindo os quatro agentes de segurança. Na manhã seguinte, o governador Cláudio Castro (PL) afirmou que o número oficial era de 58 mortos. Horas depois, a cúpula da segurança estadual, representada pelo secretário da Polícia Civil, Felipe Curi, atualizou o saldo para 121 mortos: 4 policiais e 117 que ele classificou como "criminosos" ou "narcoterroristas". O governador justificou a mudança, afirmando que a contagem oficial só é feita quando os corpos entram no Instituto Médico-Legal (IML).

Paralelamente aos números oficiais, uma narrativa chocante se desenrolava nas comunidades. A partir da madrugada do dia 29, moradores do Complexo da Penha começaram a resgatar dezenas de corpos de uma área de mata conhecida como Vacaria, na Serra da Misericórdia. Os cadáveres foram levados para a Praça São Lucas, onde foram alinhados para facilitar o reconhecimento por familiares.

  • Segundo moradores: Foram encontrados e transportados pelo menos 74 corpos.
  • Segundo a Polícia Civil: Foram 63 corpos retirados da mata.
  • Outros corpos: Registros de midia também contabilizaram pelo menos 6 corpos levados em uma kombi para o Hospital Estadual Getúlio Vargas, que não foram inicialmente contabilizados.

Se confirmados os números dos moradores, o total de mortos se aproximaria de 144, um valor significativamente superior aos 121 admitidos oficialmente. O ativista Raull Santiago, que participou dos resgates, descreveu a cena como "algo novo, brutal e violento num nível desconhecido".

As Duas Narrativas: "Guerreiros" versus "Chacina"

As versões sobre o que aconteceu na operação são diametralmente opostas. O governador Cláudio Castro defendeu veementemente a ação, classificando-a como "um sucesso" e um "duro golpe na criminalidade". Ele declarou que as "únicas vítimas" foram os quatro policiais mortos, a quem se referiu como "guerreiros". Para justificar a alta letalidade, Castro argumentou que o confronto ocorreu em área de mata. "Não creio que tivesse alguém passeando na mata num dia de conflito. Por isso a gente pode tranquilamente classificar de criminosos".

Do outro lado, moradores e entidades de direitos humanos relatam execuções e uma "catástrofe". Depoimentos colhidos na comunidade falam de corpos com sinais de execução, como tiros na testa, facadas e mãos amarradas. A pedagoga Érica Paula, que perdeu um neto, classificou o ocorrido como "chacina". Ramildo Belizério, da Associação das 4 Bicas, foi enfático: "A maioria dos corpos foi amarrada, esfaqueada. Eles foram executados".

A versão do Estado: investigações e contrainformação

Em resposta às acusações, a Polícia Civil abriu um inquérito para investigar a remoção e a exposição dos corpos pelos moradores. O secretário Felipe Curi apresentou uma versão diferente, sugerindo que as cenas na praça poderiam ser uma tentativa de manipulação da opinião pública. Ele afirmou ter imagens que mostrariam os mortos, anteriormente, usando roupas camufladas e coletes à prova de balas, equipamentos que teriam sido removidos antes da exposição pública. "Eu não me surpreenderia se eles aparecessem com lesões a faca para incriminar os policiais", declarou Curi.

O Custo Humano: Luto, Medo e a Vida na Linha de Fogo

Para além dos números, a operação teve um impacto profundo na vida dos moradores. Relatos descrevem um dia de terror, com pessoas presas em casa sob intenso tiroteio, impossibilitadas de trabalhar. Ataques com drones e barricadas em chamas feitas por criminosos em represália paralisaram partes da cidade, causando caos no transporte público e deixando milhares impedidos de voltar para suas casas. O presidente da ONG Rio de Paz, Antônio Carlos Costa, questionou a ação do Estado: "Não consigo imaginar, em uma nação livre e desenvolvida, um governador que banca um morticínio desses continuar no seu posto".

Enquanto o governo insiste no "sucesso" da operação, a discrepância nas contagens de mortos, os relatos dos moradores sobre execuções e as imagens dos corpos na Praça São Lucas deixam mais perguntas do que respostas. O abismo entre as versões oficial e comunitária evidencia não apenas uma tragédia de proporções históricas, mas uma profunda crise de confiança e transparência.

Com informações de Agência Brasil, BRADO Jornal, Esquerda Diário, Folha de S.Paulo, G1, Gazeta do Povo, O Globo. ■