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Rio: a profecia do Rappa se tornou realidade
Em um dia que deveria ser de celebração pelo dia do Servidor Público, a cidade do Rio de Janeiro acordou refém do medo para trabalhar normalmente, embalada subliminarmente por uma canção de 22 anos
Analise
Foto: https://i.ytimg.com/vi/guxWdc0gApA/maxresdefault.jpg
■   Bernardo Cahuê, 28/10/2025

Em um dia que deveria ser de celebração, o Rio de Janeiro acordou refém do medo. A "Linha Vermelha", canção profética da banda O Rappa (Marcelo Falcão, Marcelo Lobato, Xandão e Lauro Farias) que há 22 anos pintava um cenário de colapso urbano, materializou-se de forma violenta e trágica em 28 de outubro de 2025, data do Servidor Público. A megaoperação policial que paralisou a cidade, causou dezenas de mortes e atraiu críticas internacionais revela a profundidade da crise de segurança e planejamento na capital fluminense.

A Operação Contenção, dirigida contra a facção Comando Vermelho nos complexos do Alemão e da Penha, foi a mais letal da história do Rio de Janeiro, com um saldo de 64 mortos (60 civis e 4 policiais) e 81 presos. Mobilizando 2.500 agentes para cumprir mandados de prisão em uma área de 9 milhões de metros quadrados, a ação foi definida pelo governador Cláudio Castro como uma batalha contra "narcoterroristas" - um discurso que viralizou no meio político após as declarações de Donald Trump. O aparato da operação no Rio incluiu helicópteros, 32 blindados terrestres e drones, estes últimos também usados pelos criminosos para lançar granadas contra as forças policiais, em uma inédita demonstração de poder bélico.

Os versos de O Rappa, "Fecharam a Linha Vermelha / Fecharam a Linha Amarela / Fecharam Avenida Brasil / Grajaú - Jacarepaguá / e também o Anil / Alto da Boavista, Vista Chinesa, Paineras / mandaram esperar / Sentido Lagoa - Barra / Niemeyer", que soavam como uma metáfora distante em 2003, descreveram com precisão assustadora a realidade da cidade. A operação forçou o fechamento de vias críticas, paralisou o transporte público e levou ao fechamento de 46 escolas municipais e à suspensão de aulas em universidades como UFRJ, Uerj, UFF, Rural e UNIRIO. Unidades de saúde também tiveram seus serviços interrompidos, mergulhando comunidades inteiras em um estado de sítio.

Em meio ao caos, o prefeito Eduardo Paes havia publicado no Diário Oficial o Decreto Nº 56.869, transferindo as comemorações do Dia do Servidor Público para 31 de outubro, criando um ponto facultativo. A medida, que alterou o calendário administrativo e incluía comemorações pelo dia do Servidor Público no Centro Administrativo São Sebastião, acabou por criar um contraste surreal entre a burocracia funcional e o colapso da segurança pública, configurando uma coincidente lambança entre uma Prefeitura e um Estado que parecem não conversar.

A dimensão da tragédia não passou despercebida internacionalmente. O Escritório de Direitos Humanos da ONU manifestou-se, afirmando estar "horrorizado" com a escala da violência e lembrando às autoridades brasileiras suas obrigações sob a lei internacional de direitos humanos. O Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União cobraram explicações formais do governo estadual, questionando a letalidade da operação e a adoção de "meios menos gravosos". Organizações da sociedade civil foram mais contundentes, classificando o episódio como uma "chacina" que "inscreve-se em um longo e trágico histórico de matanças cometidas por forças policiais no Estado".

O governador Cláudio Castro, ao defender a operação, criticou a ausência de apoio do governo federal e das Forças Armadas, declarando que "o Rio está sozinho nessa guerra". Simultaneamente, referiu-se à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 do STF, que limita operações policiais em comunidades, como "maldita", acusando-a de favorecer criminosos.

Os números da Operação Contenção a consolidam como um marco trágico. De acordo com o Instituto Fogo Cruzado, esta foi a operação mais letal dos últimos anos, superando em mais do dobro o número de vítimas fatais da ação no Jacarezinho em 2021, que tinha 27 civis mortos. Sozinha, a operação de 28 de outubro responde por aproximadamente um quinto de todas as mortes em ações policiais no Rio em 2025.

Vinte e cinco anos depois de sua composição, "Linha Vermelha" transformou-se de alerta artístico em espelho de uma realidade avassaladora. A música que prenunciava o fechamento de avenidas e o colapso da mobilidade urbana viu-se superada por uma realidade onde não apenas o trânsito parou, mas onde a vida foi interrompida em escala industrial, o calendário oficial foi alterado por decreto e a violência alcançou proporções que ecoaram além das fronteiras nacionais, unindo o ritmo do Rappa ao coro internacional de horror.

Vou me benzer
Vou orar
Vou agradecer
Vou me rezar

Com informações de: BBC, Agencia Brasil, CNN, O Globo, LegisWeb, Tempo Real RJ, Genius Lyrics. ■