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Como a desativação de sistema de fiscalização abriu espaço para uma crise de saúde pública
Intoxicações e mortes por bebidas adulteradas expõem o vazio fiscal deixado pelo fim do SICOBE e a lentidão para implementar um novo modelo de controle
Analise
Foto: https://www.sinergiacut.org.br/wp-content/uploads/2025/10/systemuploadsnewseaa7204c7c38c2f1101-700x460xfit-22c7a.jpg
■   Bernardo Cahue, 07/10/2025
Metanol na Mesa

O Brasil enfrenta uma crise de saúde pública diretamente ligada a um vazio de fiscalização. Casos de intoxicação por metanol, uma substância altamente tóxica, associados ao consumo de bebidas alcoólicas adulteradas, acenderam um alerta nacional. Esta reportagem investiga como a desativação do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (SICOBE), em 2016, criou um ambiente propício para a proliferação de produtos clandestinos, e como a morosidade em substituí-lo coloca em risco a saúde dos consumidores.

O Corpo sob Ataque: A Traiçoeira Ação do Metanol

O metanol é uma substância traiçoeira. Incolor e com odor semelhante ao etanol (álcool comum), é impossível de ser identificado pelo consumidor sem análise laboratorial. Inicialmente, o corpo trata o metanol como se fosse álcool comum, o que resulta em sintomas enganosos como náusea, tontura e dor de cabeça nas primeiras 12 horas. A tragédia, no entanto, se desenrola no fígado.

É neste órgão que a enzima álcool desidrogenase transforma o metanol em dois compostos extremamente tóxicos: o formaldeído (o mesmo usado para conservar cadáveres) e, posteriormente, o ácido fórmico. Estes metabólitos são os verdadeiros agentes do caos. O ácido fórmico, em particular, é altamente tóxico porque bloqueia a produção de energia nas células, atacando preferencialmente tecidos que mais demandam energia, como o nervo óptico e o cérebro.

Entre 12 e 24 horas após a ingestão, surgem os sintomas característicos da intoxicação grave:

  • Alterações visuais: visão borrada, fotofobia (sensibilidade à luz) e a sensação de enxergar uma "chuva de pixels".
  • Acidose metabólica: o sangue fica excessivamente ácido, levando a respiração acelerada, confusão mental e sobrecarga no coração e pulmões.

Se não tratado rapidamente, o quadro evolui para complicações devastadoras em até 48 horas, incluindo cegueira irreversível, convulsões, coma, falência múltipla de órgãos e morte. Especialistas alertam que não existe uma dose segura de metanol, com casos graves registrados com a ingestão de apenas 10 m .

A Corrida contra o Tempo: Os Antídotos e o Tratamento

O tratamento da intoxicação por metanol é uma corrida contra o relógio. O princípio é impedir que o fígado transforme o metanol nas substâncias tóxicas. Para isso, existem dois antídotos principais:

  • Etanol Farmacêutico: Disponibilizado no Brasil, ele funciona por competição. Como etanol e metanol disputam a mesma enzima no fígado, administrar etanol em doses controladas faz com que o fígado priorize seu processamento, deixando o metanol ser eliminado intacto pela urina e respiração. Historicamente, esse princípio levou médicos a usarem até mesmo cachaça como antídoto improvisado em surtos passados.
  • Fomepizol: Considerado um antídoto superior, ele bloqueia diretamente a enzima, impedindo a produção dos metabólitos tóxicos sem causar embriaguez. No entanto, seu alto custo – uma dose pode chegar a R$ 6,3 mil – impede sua disponibilidade no país, levando o governo a importar doses de forma emergencial.

O tratamento ainda envolve hemodiálise para filtrar o sangue e bicarbonato para corrigir a acidose. Cada hora de atraso no início do tratamento reduz drasticamente as chances de reversão dos danos, especialmente da visão.

O Vácuo da Fiscalização: A Desativação do SICOBE e Seus Impactos

Enquanto os hospitais lutam contra as consequências da intoxicação, a raiz do problema está na falta de controle sobre a produção. Criado em 2008, o SICOBE era um sistema que instalava sensores nas linhas de envase das fábricas para registrar, em tempo real, o volume de bebidas produzidas. Esses dados eram cruzados com as notas fiscais, permitindo à Receita Federal um controle efetivo e a identificação de subnotificações.

O sistema foi bem-sucedido. Em seu primeiro ano de operação, teria aumentado a arrecadação em 40% e reduzido em 46% a subdeclaração de produção. No entanto, em 2016, o SICOBE foi desativado por um Ato Declaratório Executivo. O controle passou a depender exclusivamente da autodeclaração das empresas, criando um vácuo de fiscalização.

As justificativas oficiais para o fim do sistema foram mudanças na legislação tributária. Um representante da Receita chegou a declarar publicamente que, com a nova forma de cálculo do IPI, "passa a ser um controle da emissão de notas fiscais de venda", questionando a necessidade de controlar a produção.

As Consequências do Vácuo: Fraude, Arrecadação e Saúde Pública

A desativação do SICOBE teve impactos profundos e negativos:

  • Explosão do Mercado Ilegal: Estima-se que, em 2022, o crime organizado tenha movimentado R$ 56,9 bilhões com bebidas ilegais.
  • Evasão Fiscal: No mesmo ano, a sonegação no setor de bebidas causou perdas de até R$ 72 bilhões aos cofres públicos. Um estudo da USP aponta que a reativação do SICOBE poderia recuperar R$ 15,4 bilhões anuais em arrecadação.
  • Risco à Saúde: Sem a rastreabilidade, ficou extremamente difícil identificar a origem de produtos adulterados, comprometendo a fiscalização sanitária e a saúde pública.

O Labirinto Burocrático: A Lenta Busca por um Substituo

Desde a queda do SICOBE, a promessa de um novo sistema de fiscalização rasteja em ritmo burocrático. Em 2022, a Receita Federal instituiu o Programa Brasileiro de Rastreabilidade Fiscal (Rota Brasil), que previa selos digitais nas embalagens. No entanto, a implementação esbarra em entraves internos.

Um grupo de trabalho criado para coordenar a implementação se reuniu 26 vezes entre julho e novembro de 2022 e depois foi suspenso. Um segundo GT, formado em junho de 2023, teve seu prazo inicial estendido e, segundo a Receita, não concluiu o relatório final devido à greve de auditores fiscais. Em 2023, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou o restabelecimento do SICOBE, mas a decisão foi suspensa após um recurso da Advocacia-Geral da União.

Conclusão: Uma Crise Anunciada

Os casos de intoxicação por metanol são a face mais cruel e visível de um problema sistêmico. Eles mostram que a opção por desmontar um sistema de controle eficaz, baseada em uma visão contábil estreita, tem custos que vão muito além da arrecadação. O custo é pago com a saúde e a vida de cidadãos. A lentidão na construção de um modelo substituto, após oito anos, demonstra uma falta de prioridade alarmante. A crise atual é um aviso urgente: sem um controle rígido e tecnológico sobre a produção de bebidas, o mercado continuará sendo um campo fértil para a clandestinidade, e o próximo copo pode ser uma sentença.

Com informações de: G1, CNN Brasil, BBC, Prefeitura Municipal de Jacareí, LegisWeb, Bloomberg, O Joio e O Trigo. ■