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A expectativa midiática por um embate Lula-Trump ofusca debates cruciais na ONU
Enquanto a cobertura se concentra no possível encontro entre os presidentes, os discursos na Assembleia Geral revelam projetos antagônicos para a ordem global e impactos reais para o Brasil
Analise
Foto: https://static.poder360.com.br/2025/09/lula-trump-onu-848x477.jpg
■   Bernardo Cahue, 23/09/2025

A abertura do Debate Geral da 80ª Assembleia Geral da ONU, nesta terça-feira (23), foi antecipada pela mídia sob um único e grande suspense: o primeiro embate presencial entre Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump. A narrativa de um confronto espetacular entre dois mundos — o multilateralismo progressista contra o isolacionismo conservador — mostrou-se um roteiro tentador para a cobertura jornalística. No entanto, essa lógica de espetacularização corre o risco de simplificar uma crise complexa e ofuscar os pontos fundamentais dos discursos que ambos os líderes proferiram no principal fórum mundial.

O cenário estava armado para o drama. Por tradição, o Brasil é o primeiro país a discursar, seguido imediatamente pelos Estados Unidos, nação-sede da ONU. A sequência ininterrupta dos discursos de Lula e Trump criou a expectativa natural de que um assistiria ao outro, e de que um cruzamento nos corredores seria inevitável. Fontes da comitiva brasileira, no entanto, relataram à imprensa que não havia qualquer esforço diplomático para um encontro, principalmente após o anúncio de novas sanções americanas contra autoridades brasileiras na segunda-feira (22). A aposta de alguns assessores era até mesmo pelo atraso habitual de Trump em seus compromissos, um detalhe comportamental que alimentava a narrativa de atrito.

Os pontos cruciais do discurso de Lula

Mais do que uma réplica a Trump, o discurso do presidente brasileiro foi a defesa de uma agenda positiva e global. Confira os eixos centrais da fala de Lula :

  • Defesa da soberania nacional e não-intervenção: Uma resposta direta às sanções aplicadas pelos EUA, que Lula classificou como tentativa de "chantagem econômica" e interferência em assuntos internos do Brasil.
  • Multilateralismo como antídoto ao unilateralismo: Enquanto Trump prega o "America First", Lula defendeu a cooperação internacional e o fortalecimento de fóruns multilaterais como único caminho para resolver crises globais.
  • Crítica ao protecionismo e às tarifas: O presidente brasileiro contestou as justificativas econômicas para o "tarifaço" imposto por Trump, citando o superávit comercial histórico dos EUA com o Brasil.
  • Reforma da ONU e voz do Sul Global: Lula voltou a pleitear uma reforma do Conselho de Segurança e maior participação dos países em desenvolvimento nas decisões internacionais, agenda alinhada com os BRICS.
  • COP30 e emergência climática: O evento que o Brasil sediará em Belém, em novembro, foi colocado como prioridade máxima, com um apelo para que nações ricas cumpram seus compromissos financeiros.
  • Paz nos conflitos da Ucrânia e Gaza: O discurso deve reiterar o apelo pelo fim das hostilidades, com Lula mantendo sua crítica contundente às ações de Israel na Faixa de Gaza.

Para além do apertão de mãos: a construção midiática do embate

A ânsia por um encontro físico entre Lula e Trump, ainda que informal, revela uma dinâmica perversa da cobertura noticiosa contemporânea. A imagem simbólica do cumprimento ou do desdém frequentemente ganha mais destaque do que a análise aprofundada dos conteúdos programáticos em jogo. Essa abordagem espetacularizada tende a:

  1. Personalizar conflitos estruturais: Reduz complexas disputas geopolíticas e econômicas a uma rivalidade entre dois indivíduos, simplificando narrativas e empobrecendo o debate público.
  2. Supervalorizar o gestual em detrimento do substantivo: A possível encenação de um encontro nos bastidores pode ofuscar as profundas diferenças entre os projetos de mundo defendidos nos púlpitos.
  3. Criar expectativas artificiais: A própria imprensa passou a especular sobre como o governo brasileiro encararia a eventual menção de Trump a Bolsonaro, tratando-a como uma jogada que poderia "elevar o moral" do Brasil no palco global, em uma clara espetacularização da diplomacia.

Por fim, a cobertura do evento na ONU evidencia um jornalismo tensionado entre a necessidade de informar sobre questões de extrema relevância — como guerras, clima e comércio global — e a sedução por um confronto personalizado que gera engajamento imediato. A verdadeira disputa, no entanto, não se resume a Lula e Trump. É o embate entre duas visões de mundo inconciliáveis sobre o papel dos Estados e o futuro da cooperação internacional. Focar excessivamente no primeiro aspecto é perder de vista a dimensão histórica do segundo.

Com informações de: BBC, CNN Brasil, CNN Español, G1, Poder360, UOL.■