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Acusações sobre exploração sexual infantil no Marajó carecem de provas e são desmentidas
Ex-ministra Damares Alves afirmou em culto que crianças eram mutiladas e submetidas a regimes alimentares forçados para facilitar abusos, mas MPF nunca recebeu denúncias com tais detalhes
Politica
Foto: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRM48zIfa5Wiwy5YZN4K5lkx_vcxnZ8r2_s1w&s
■   Bernardo Cahue, 20/08/2025

As declarações da ex-ministra Damares Alves sobre supostos casos de exploração sexual infantil com mutilações e torturas na Ilha do Marajó, no Pará, não foram comprovadas por investigações oficiais e são contestadas por autoridades locais e organizações da sociedade civil. Em pronunciamento durante um culto religioso em outubro de 2022, a então senadora eleita descreveu cenários chocantes que, segundo ela, seriam comuns na região.

Damares afirmou que "crianças brasileiras de três, quatro anos têm seus dentinhos arrancados para não morderem na hora do sexo oral" e que seriam alimentadas com "comida pastosa para o intestino ficar livre na hora do sexo anal". Ela também mencionou conhecimento de estupros de recém-nascidos e a venda de vídeos desses abusos por até R$ 100 mil.

No entanto, as alegações não se sustentaram perante as investigações oficiais. O Ministério Público Federal (MPF) divulgou nota afirmando que, em 30 anos, nenhuma denúncia sobre tráfico de crianças no Marajó mencionou as torturas citadas pela ex-ministra. O órgão informou que atuou, de 2006 a 2015, em três inquéritos civis e um inquérito policial sobre supostos casos de tráfico internacional de crianças no arquipélago, mas nenhum dos casos correspondia às descrições feitas por Damares.

Além disso, a CPI da Exploração Sexual realizada no Pará, que investigou cerca de 100 mil casos entre 2005 e 2009, também não encontrou nenhum caso com as características descritas pela ex-ministra. O relator da comissão, ex-deputado Arnaldo Jordy, afirmou que nunca foram registrados casos de crianças com dentes removidos ou submetidas a regimes alimentares forçados com objetivos sexuais.

Diante da falta de provas, o MPF moveu uma ação civil pública contra Damares, pedindo uma indenização de R$ 5 milhões por danos sociais e morais à população do arquipélago pela divulgação de "falsas informações sensacionalistas".

Versões contraditórias e origem das alegações

A ex-ministra apresentou diferentes versões sobre a origem das supostas denúncias. Inicialmente, atribuiu as informações a "conversas com o povo na rua" durante visitas ao Marajó. Em outras ocasiões, mencionou relatórios de CPIs já encerradas e a ouvidoria de seu ministério, mas não apresentou evidências concretas.

Quando questionada pela imprensa, Damares alegou que os casos estariam em inquéritos sigilosos e que não poderia divulgar mais informações para não comprometer as investigações. "Eu vou pagar o preço por muito tempo ainda de acharem que eu menti, mas é para preservar as investigações. Aguardem", disse ela à Folha de S.Paulo.

Jornalistas que tiveram acesso aos relatórios das CPIs mencionadas por Damares constataram que não há menção aos supostos casos de mutilações e torturas. A assessoria da ex-ministra enviou a um jornal 2.093 páginas de documentos, mas nenhum continha os fatos por ela descritos.

Contexto de desinformação e estigmatização

Especialistas e organizações que atuam no Marajó alertam que alegações não comprovadas prejudicam o enfrentamento real da violência sexual na região. A freira Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, que preside o Instituto de Direitos Humanos Dom José Luís Azcona, criticou a abordagem sensacionalista: "A fala da Damares não contribui para o combate à exploração infantil, é cruel e degradante".

O Observatório do Marajó emitiu nota afirmando que "a população marajoara não normaliza violências contra crianças e adolescentes" e que a garantia de dignidade depende de políticas públicas baseadas em evidências, e não de "mentiras, distorções e manipulações".

Embora a violência sexual seja um problema real na região – o Pará registra uma média de cinco casos de abuso e exploração infanto-juvenil por dia, número acima da média nacional –, as alegações específicas de Damares não correspondem aos padrões documentados pelas autoridades.

Possível origem fictícia das alegações

Investigadores apontaram que relatos semelhantes aos descritos por Damares circulam há anos em fóruns da internet como ficção. Um texto anônimo publicado em 2010 no site 4chan – plataforma conhecida por conteúdo satírico e extremista – descreve cenários quase idênticos, incluindo a remoção de dentes e alimentação líquida forçada para facilitar abusos sexuais.

Essas narrativas foram posteriormente incorporadas por teorias conspiratórias como a QAnon, que alega a existência de uma rede global de pedofilia satânica. Especialistas notaram similaridades entre a retórica usada por Damares e essas teorias, incluindo a ideia de uma "guerra espiritual" contra o mal.

Problemas reais versus alegações fictícias

Embora as alegações específicas de Damares careçam de comprovação, a vulnerabilidade de crianças e adolescentes no Marajó é um problema real. A região possui alguns dos piores índices de desenvolvimento humano do país, com municípios como Melgaço ocupando a última posição no ranking nacional de IDH.

Organizações locais destacam que a exploração sexual na região está diretamente ligada à pobreza e à falta de oportunidades. Irmã Henriqueta descreveu casos de meninas que subiam em balsas em troca de comida ou pequenos objetos: "Uma menina de 9 anos disse que subia desde que se entendia por gente, pra ganhar comida".

A ausência do Estado e a precariedade dos serviços públicos são fatores agravantes. Em São Sebastião da Boa Vista, município marajoara com mais de 21 mil habitantes, não há delegado há mais de um ano, e a polícia e o Conselho Tutelar não possuem barcos para patrulhar a vasta extensão fluvial.

A solução apontada por especialistas e organizações locais passa por políticas públicas estruturais – e não por medidas simplistas ou espetaculosas. Como afirmou a vereadora de Belém e ex-enfermeira no Marajó, Nazaré Lima: "A ilha do Marajó precisa de muito mais que uma fábrica de calcinhas. Precisa de gente que trate o povo com respeito, que conheça a região e que tenha um olhar de política pública".

Com informações de: G1, Folha de S.Paulo, CartaCapital, UOL, O Globo, Aos Fatos, Agência Pública