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A líder do PSOL na Câmara, deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), está novamente desprotegida. Por decisão do presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), a escolta da Polícia Legislativa Federal que garantia sua segurança foi suspensa a partir de quinta-feira (11), sem aviso prévio à parlamentar. O despacho assinado por Motta se baseia em um parecer técnico que apontaria a "insubsistência dos motivos" que justificavam a proteção, apesar de investigações sobre ameaças de morte contra Talíria seguirem abertas na Polícia Federal e na Polícia Civil do Rio de Janeiro. Para a deputada e seu partido, o ato é uma clara retaliação política, executada no dia seguinte a um intenso embate no plenário onde ela criticou a condução de Motta e atuou contra pautas de seu interesse, como o projeto que reduz penas de condenados por atos golpistas de 8 de janeiro.
O episódio não é um caso isolado de conflito parlamentar. Ele expõe uma ferida aberta na política brasileira: o risco desproporcional e historicamente negligenciado que pesa sobre mulheres negras que ousam ocupar espaços de poder. A sombra de Marielle Franco, vereadora do PSOL do Rio brutalmente assassinada em 2018, paira sobre o debate. Assim como Marielle, Talíria é uma mulher negra, periférica, do PSOL, com trajetória marcada pela defesa dos direitos humanos e pelo enfrentamento a milícias e ao racismo estrutural. A pergunta que ecoa, portanto, é inevitável e angustiante: estamos diante do risco concreto de termos mais uma "Marielle Franco" entre as parlamentares negras do Brasil?
A segurança de Talíria Petrone não é uma preocupação nova ou infundada. O histórico de ameaças contra ela é grave e remonta ao início de sua carreira política:
Diante desse contexto, a justificativa apresentada para a suspensão da escolta soa, no mínimo, contraditória. Segundo Talíria, a decisão se baseou em um documento que alegava "problemas de conduta pessoal", como usar Uber, frequentar lugares com aglomeração ou sair de madrugada. A deputada rebate: "Ao mesmo tempo em que dizem que meu comportamento representa risco, afirmam que não há mais necessidade de escolta". Ela também questiona o critério seletivo, já que outros parlamentares em situações semelhantes mantiveram sua proteção. Para o PSOL, a decisão, tomada após Talíria liderar uma articulação bem-sucedida para salvar o mandato do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) da cassação, é uma "pura e simples retaliação" e um ato de "violência política de gênero". A assessoria de Hugo Motta afirmou que a decisão foi técnica e que o tema será reavaliado.
O assassinato de Marielle Franco em 14 de março de 2018 foi um episódio brutal que chocou o mundo, mas não foi um acidente na história política brasileira. Marielle era um símbolo potente: uma mulher negra, lésbica, criada na favela da Maré, socióloga e defensora ferrenha dos direitos humanos, que usava seu mandato para combater a violência policial e a intervenção militar no Rio. Sua morte, executada com tiros precisos à queima-roupa, enviou uma mensagem de terror a todas as pessoas que, como ela, desafiam as estruturas de poder tradicionais.
Passados mais de sete anos, a violência política contra mulheres negras não só persiste como se sofisticou. Uma pesquisa inédita do Instituto Marielle Franco, analisando 77 casos entre 2021 e 2025, conclui que a violência política digital de gênero e raça é um "regime, não uma exceção". Os ataques virtuais, repletos de ódio racista e misógino, funcionam como um gatilho frequente e um mecanismo de abertura para a violência física. Luyara Franco, filha de Marielle e diretora do Instituto, destacou que entre os achados estão ameaças que evocam o assassinato de sua mãe como forma de silenciamento.
Este ambiente hostil tem alvos claros: mulheres negras, LBTQIA+, periféricas e defensoras de direitos humanos. É exatamente o perfil de parlamentares como Talíria Petrone, que inclusive aparece em terceiro lugar no Ranking da Igualdade Racial do Instituto Peregum, que avalia o engajamento legislativo no combate ao racismo. A mesma pesquisa que coloca Talíria entre as mais atuantes pela igualdade racial também a aponta como a parlamentar que mais sofre violência política digital no Brasil. A coincidência não é casual: atuar contra o racismo estrutural no Brasil gera uma reação violenta e organizada.
A sensação de desamparo não é apenas uma percepção individual das parlamentares. É um fato documentado pela falha crônica das instituições em oferecer proteção adequada e investigar com celeridade e transparência. Em 2020, Talíria Petrone já havia precisado recorrer à Organização das Nações Unidas (ONU) para denunciar as ameaças que sofria, num claro sinal de descrença na capacidade ou vontade do Estado brasileiro em protegê-la.
Esta falta de respaldo se reflete em números alarmantes:
Sem representatividade adequada, as pautas que poderiam garantir a segurança e a integridade dessas mulheres não são priorizadas. A deputada Dani Monteiro (PSOL/RJ) resume: "Temos clareza do quão mais alta é a incidência dessas violências para nós". Erika Hilton, hoje deputada federal, então candidata a vereadora, destacou em 2020: "Quando nós ocupamos a política constantemente somos boicotadas, limadas, pra ver se a gente recua". A retirada da escolta de Talíria, sem diálogo e em momento politicamente conveniente, se encaixa nesse padrão histórico de boicote e intimidação.
A suspensão da proteção de Talíria Petrone pelo presidente da Câmara não é um mero incidente administrativo. É um ato político com profundas implicações para a democracia brasileira. Ele sinaliza, na prática, que a segurança de uma parlamentar que enfrenta milícias e defende pautas progressistas pode ser relativizada e usada como moeda de troca em conflitos partidários. O fantasma de Marielle Franco não é invocado por dramaticidade, mas como um precedente real e ainda impune – seus executores foram condenados apenas em outubro de 2024, mas os mandantes seguem não identificados.
O risco de uma nova tragédia é real. No entanto, a resposta a essa tentativa de intimidação também tem se mostrado vigorosa. A mobilização de 300 mil mulheres negras em Brasília em novembro de 2025, na 2ª Marcha das Mulheres Negras, é um testemunho de que a luta por Reparação e Bem Viver – conceitos que incluem, fundamentalmente, o direito à vida e à integridade física – está mais organizada do que nunca. A visibilidade que o caso de Talíria ganha força um movimento que recusa o silêncio.
A pergunta inicial – "qual o risco de termos mais uma 'Marielle Franco'?" – não possui uma resposta simples. O risco existe e é elevado, alimentado por um sistema que combina racismo, misoginia, violência digital e falhas institucionais. A diferença entre hoje e 2018, talvez, seja que a sociedade civil e os movimentos negros estão mais alertas e menos dispostos a aceitar a naturalização da violência política. Cabe agora às instituições, começando pela própria Câmara dos Deputados, provar que a vida de uma parlamentar negra sob ameaça vale mais do que qualquer interesses políticos circunstanciais. A reversão da decisão de Hugo Motta será o primeiro teste.
Com informações de: G1, Wikipedia, Rádio Senado, CartaCapital, Instituto Marielle Franco, Veja, Brasil de Fato, Alma Preta, Correio Braziliense ■