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A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), criada em 1961 no auge da Guerra Fria, carrega consigo uma contradição fundacional. Sua missão declarada é promover o desenvolvimento econômico e a democracia no mundo, mas sua história está inextricavelmente ligada à promoção dos interesses estratégicos e de segurança nacional dos Estados Unidos. Esta análise crítica aglutina três dimensões da atuação da agência: seu impacto humanitário atual após cortes orçamentários drásticos, seu histórico de acusações de interferência política e mudança de regime em múltiplos países, e seu papel específico no Golpe Militar de 1964 no Brasil e no apoio a ditaduras latino-americanas. Juntas, essas dimensões pintam um retrato complexo de uma instituição que opera permanentemente na zona cinzenta entre a ajuda e a ingerência.
O desmantelamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), uma das maiores doadoras de ajuda humanitária do mundo, pelo governo do presidente Donald Trump, está criando um terremoto com efeitos diretos e imediatos no Brasil. Enquanto organizações sociais enfrentam o risco concreto de fechamento, deixando milhares de pessoas em vulnerabilidade, o debate público é inundado por alegações graves — porém não comprovadas — de que a agência teria sido usada para interferir em eleições brasileiras. Esta análise separa os fatos da ficção e expõe os detalhes de uma crise que mistura geopolítica, ajuda internacional e soberania nacional.
Impacto Imediato: Ameaça de Fechamento e Sofrimento Humano no Brasil
Os cortes radicais determinados pela administração Trump, que resultaram no cancelamento de 83% dos programas globais da USAID, já não são uma ameaça distante, mas uma realidade devastadora para dezenas de organizações no país. Sem a renovação dos contratos de ajuda global, instituições com décadas de atuação estão à beira do colapso financeiro.
A Cáritas-RJ, que atende refugiados e imigrantes há quase 50 anos, é um exemplo visceral. A coordenadora do programa, Aline Thuller, declarou: "Nunca vivemos nada parecido na história da Cáritas". A organização, que atendeu mais de 78 nacionalidades apenas em 2025, foi forçada a cortar um auxílio de subsistência emergencial para alimentação, cuidados médicos e aluguel de recém-chegados, demitir parte de sua equipe e atrasar programas essenciais como cursos de português. A própria Aline e outros funcionários estão trabalhando sem salário.
A Casa 1, centro de acolhida para pessoas LGBTQIA+ em São Paulo, anunciou o fechamento de suas portas para abril de 2026. Seu diretor, Iran Giusti, atribuiu o "primeiro baque" diretamente à eleição de Donald Trump e às subsequentes suspensões de fundos internacionais para projetos de diversidade. Giusti alerta que o fechamento deixará um vazio, uma vez que o Estado não consegue garantir a segurança dessas populações, que frequentemente são expulsas de casa e sofrem violências nas ruas.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), que repassa recursos a parceiros como a Cáritas, também sofreu uma redução de quase 25% em seu orçamento global — impactado pelos cortes americanos. Pablo Mattos, oficial do Acnur Brasil, foi taxativo: "O impacto é considerável e bastante negativo. Eu diria até que devastador". Ele estima que cerca de 270 mil pessoas no Brasil que precisariam de ajuda podem ficar desassistidas.
O desmonte global da USAID: contexto e justificativas controversas
A crise atual tem origem em uma ofensiva política conduzida pelo presidente Donald Trump e seu chefe do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), o bilionário Elon Musk. Logo no início do mandato, Trump classificou a USAID como administrada por "um bando de lunáticos radicais" e Musk a chamou de "ninho de víboras" e uma "organização criminosa", sem apresentar provas detalhadas das alegações.
As ações foram rápidas e drásticas:
Essa política, alinhada à visão de "America First" (América em Primeiro Lugar), gerou consequências humanitárias imediatas em várias partes do mundo. Na Bélgica, por exemplo, o governo ordenou a destruição de milhões de métodos contraceptivos que seriam enviados a países africanos, um estoque avaliado em US$ 9,7 milhões que poderia atender 1,4 milhão de pessoas. Grupos trabalhistas entraram com um processo contra Trump, argumentando que suas ações excedem a autoridade presidencial e criaram uma "crise humanitária global", interrompendo desde a distribuição de água potável em campos de refugiados até o combate à malária e ao HIV.
Longe de ser uma mera distribuidora de ajuda, a USAID tem um histórico documentado de atuação como ferramenta de soft power para influenciar processos políticos internos de outras nações. Seus mecanismos são frequentemente sutis, mas seus objetivos, alinhados à política externa dos EUA.
Precedentes Históricos: A Sombra da Guerra Fria e da Doutrina Monroe
A suspeita sobre os objetivos finais da USAID não é nova. Ela remonta ao contexto da Guerra Fria, quando o apoio ao desenvolvimento era claramente um braço da contenção ao comunismo. Um precedente direto de envolvimento dos EUA em mudanças de regime na América Latina foi o golpe de Estado na Guatemala em 1954, arquitetado pela CIA, que depôs o presidente democraticamente eleito Jacobo Árbenz. Embora anterior à criação da USAID, este episódio estabeleceu um padrão de intervenção que moldaria a percepção regional sobre as ações americanas nas décadas seguintes.
Nos anos 1980, o escândalo Irã-Contra revelou uma complexa rede onde recursos de operações secretas (incluindo venda de armas ao Irã) eram desviados para financiar os Contras, grupos rebeldes que tentavam derrubar o governo sandinista de esquerda na Nicarágua. Embora a USAID não tenha sido o ator central neste escândalo conduzido pelo Conselho de Segurança Nacional, o caso expôs como a administração Reagan violou leis do Congresso para perseguir objetivos de mudança de regime, criando um ambiente onde a linha entre ajuda externa e operações clandestinas se tornou difusa.
Casos contemporâneos e acusações em andamento
No século XXI, as acusações continuam, frequentemente envolvendo o apoio da USAID a organizações da sociedade civil, mídia independente e observadores eleitorais, vistas por governos autoritários ou seus aliados como ferramentas de desestabilização.
As acusações geralmente não apontam para golpes militares orquestrados diretamente pela USAID, mas para mecanismos mais sutis de influência política de longo prazo, que seus críticos enxergam como engenharia social ou política. Os principais instrumentos sob escrutínio são:
A defesa da USAID e de analistas independentes argumenta que seu trabalho visa empoderar atores locais e fortalecer instituições, não impor um modelo. A transparência é um ponto crucial: a USAID declara publicamente seus beneficiários (dados abertos em portais como ForeignAssistance.gov), o que, paradoxalmente, fornece material para que seus críticos mapeiem e ataquem suas redes de parceria.
A USAID carrega um histórico complexo e controverso na América Latina. Sua missão formal de promover desenvolvimento e democracia foi, em diversos momentos, instrumentalizada para servir aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos. Nenhum caso exemplifica melhor essa dualidade do que seu envolvimento no Golpe Militar de 1964 no Brasil e no subsequente apoio ao regime ditatorial, um capítulo que se desdobrou em múltiplas frentes, do financiamento à reforma educacional e ao treinamento de forças repressivas.
Envolvimento direto no Golpe e apoio inicial ao regime
O golpe que derrubou o presidente democraticamente eleito João Goulart foi um movimento civil-militar que contou com o apoio ativo e planejado do governo dos Estados Unidos. Documentos históricos classificam o evento como um "golpe apoiado pelos EUA". A motivação central era o temor de que as reformas sociais e econômicas de Goulart, e sua aproximação com movimentos de esquerda, pudessem levar o Brasil para a órbita comunista, em pleno auge da Guerra Fria.
Nesse contexto, a USAID não foi uma mera espectadora. Pesquisas apontam que, antes mesmo do golpe, a agência forneceu apoio a candidaturas oposicionistas ao governo Goulart. Após a tomada de poder pelos militares em 1º de abril de 1964, o suporte institucionalizou-se. O governo do presidente Castelo Branco (1964-1967) é descrito como um dos "mais pró-americanos da história brasileira", e a USAID forneceu apoio financeiro crucial durante seus primeiros cinco anos. Este apoio inicial foi fundamental para a consolidação do novo regime, que rapidamente abandonou qualquer pretensão de transição rápida para a democracia e instaurou uma ditadura autoritária que duraria 21 anos.
A ingressão por múltiplas frentes: educação, polícia e controle ideológico
A atuação da USAID para moldar o Brasil pós-golpe foi profunda e abrangente, indo muito além da assistência financeira. Suas intervenções visavam reestruturar instituições-chave para alinhá-las aos interesses do regime e dos EUA.
O padrão continental: A USAID e os golpes na América Latina
A intervenção no Brasil não foi um caso isolado, mas parte de um padrão sistemático de ingerência dos EUA na América Latina durante a Guerra Fria. A USAID serviu como uma das ferramentas dessa política, frequentemente atuando em conjunto ou de forma complementar a operações mais clandestinas da CIA.
Cumplicidade empresarial e a responsabilidade da mídia: o caso do Grupo Folha
A consolidação da ditadura também dependeu do apoio de setores civis nacionais, incluindo empresários e parte da imprensa. Pesquisas em andamento, como a mencionada pelo usuário, investigam a responsabilidade de empresas por violações de direitos humanos durante o período. O Grupo Folha, hoje um dos maiores jornais do país, tem seu passado escrutinado.
Documentos e depoimentos indicam que a colaboração do grupo com a repressão foi mais profunda do que a empresa admitiu publicamente por anos. A investigação aponta para o empréstimo de carros de distribuição do jornal para que agentes do DOI-CODI os usassem como disfarce em operações que resultaram em prisões, torturas e assassinatos de militantes. Em um episódio emblemático em 1971, uma camioneta baú da Folha foi usada em uma emboscada que feriu três militantes da ALN. Um ex-agente do DOI-CODI foi taxativo ao afirmar que operações tão arriscadas não ocorreriam sem o conhecimento e anuência da alta direção da empresa.
Em 2014, a Folha publicou um editorial admitindo que seu apoio inicial à ditadura foi um "erro". No entanto, pesquisadores buscam ir além do reconhecimento moral, procurando evidências materiais para uma possível reparação histórica pelas formas concretas de colaboração.
Acusações de interferência contemporânea no Brasil: o que os fatos mostram
Paralelamente à crise humanitária, uma narrativa política explosiva ganhou força, especialmente entre aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro. A alegação central é de que a USAID, durante o governo Biden, teria financiado projetos para manipular as eleições brasileiras de 2022, prejudicando Bolsonaro. O ex-funcionário do Departamento de Estado Michael Benz afirmou, sem apresentar provas, que sem a USAID, Bolsonaro "ainda seria presidente". Baseando-se nessas alegações, parlamentares como Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Gustavo Gayer (PL-GO) defendem a instalação de uma CPI para investigar a agência.
No entanto, uma verificação de fatos (fact-checking) minuciosa conduzida pelo Estadão Verifica demonstra que essas acusações são falsas ou distorcidas:
Especialistas e a própria checagem de fatos apontam que a onda de desinformação sobre a USAID ganhou tração após os ataques públicos de Trump e Elon Musk à agência, sendo depois instrumentalizada no debate político doméstico brasileiro.
A análise integrada das três dimensões da atuação da USAID – a humanitária em crise, a política intervencionista e o apoio histórico a regimes autoritários – revela uma instituição com um duplo caráter indelével. Ela é, simultaneamente, uma agência que salva vidas através de projetos de saúde e acolhimento a refugiados, e um instrumento da política externa dos EUA, usado para moldar o mundo conforme seus interesses, mesmo que isso signifique minar democracias ou apoiar ditaduras.
Os cortes de Trump expuseram como projetos humanitários genuínos são reféns de cálculos geopolíticos maiores. O histórico de interferência, do Brasil à Rússia, mostra que a promoção da "democracia" pode servir como um pretexto para a desestabilização de governos considerados hostis. E o caso brasileiro de 1964 demonstra, de forma crua, como a ajuda ao "desenvolvimento" pode ser direcionada para a consolidação de um regime autoritário, financiando tanto a propaganda ideológica nas escolas quanto os equipamentos dos órgãos de repressão.
O legado da USAID é, portanto, um espelho das contradições da própria superpotência que a criou: um poder que projeta valores universais de liberdade e progresso, mas que não hesita em violá-los quando percebe uma ameaça à sua hegemonia. Compreender esta dualidade é fundamental para avaliar criticamente não apenas o passado, mas o presente e o futuro da ajuda internacional e das relações entre as nações.
Os cortes na USAID colocam o Brasil em uma encruzilhada complexa. De um lado, revelam uma vulnerabilidade crítica: a dependência de recursos externos para manter redes de proteção social essenciais para populações marginalizadas, como refugiados e a comunidade LGBTQIA+. O possível fechamento de organizações como a Cáritas e a Casa 1 é um golpe direto na capacidade do país de lidar com suas próprias crises humanitárias.
De outro lado, o episódio reacendeu um debate legítimo, ainda que contaminado por desinformação, sobre soberania e influência estrangeira. A longa história da USAID — criada na Guerra Fria para conter a influência soviética — é marcada por acusações de atuação como braço soft power dos interesses geopolíticos dos EUA, inclusive em casos de desestabilização política. A revelação de parcerias com instituições brasileiras, como o TSE, mesmo que para projetos técnicos, alimenta desconfianças comprensíveis em um cenário global polarizado.
O resultado final, no entanto, é um paradoxo perverso: enquanto alegações não comprovadas de interferência dominam o discurso político, o sofrimento humano causado pelo fim real do financiamento é tangível e silencioso. A crise expõe a necessidade urgente de o Brasil fortalecer fontes domésticas e diversificadas de financiamento para sua sociedade civil, reduzindo sua exposição a ventos políticos internacionais voláteis. Ao mesmo tempo, demanda um debate público preciso e baseado em fatos, que distinga entre a legítima defesa da soberania e a instrumentalização política de narrativas falsas que apenas servem para obscurecer uma tragédia humanitária em andamento.
Com informações de CNN Brasil, Estadão Verifica, G1, Gazeta do Povo, O Globo, Agência Senado, Observatório da Imprensa, Swissinfo, Wikipedia, Human Rights Watch, Academia.edu, Agência Pública, Causa Operária, OPEU, Folha de S.Paulo.