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Desvendando o "rombo das estatais": uma análise além dos números
Como a metodologia questionável e a exclusão estratégica de dados distorcem o debate sobre o desempenho das empresas públicas
Economia
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■   Bernardo Cahue, 04/09/2025

Uma narrativa recorrente na grande imprensa e entre analistas econômicos conservadores tem apontado um suposto "rombo recorde" nas estatais durante o governo Lula, utilizando dados divulgados pelo Banco Central que mostram déficits bilionários. No entanto, uma análise mais aprofundada dos critérios metodológicos e do contexto completo das contas públicas revela um quadro consideravelmente mais complexo e menos alarmista do que o propagado.

Os números do Banco Central, amplamente divulgados, indicam que as estatais federais registraram um déficit de R$ 5,52 bilhões de janeiro a julho de 2025, o maior da série histórica para esse período. No acumulado de 2024, o rombo teria sido de R$ 6,7 bilhões, enquanto de janeiro a abril de 2025, o valor chegou a R$ 2,73 bilhões. Superficialmente, esses números parecem alarmantes, mas é essencial entender o que eles realmente significam.

O primeiro ponto crucial é a metodologia utilizada pelo Banco Central, que segue o critério de "necessidade de financiamento" do setor público. Esta abordagem contábil, conhecida como "abaixo da linha", basicamente compara o nível de endividamento entre períodos, sem diferenciar despesas correntes de investimentos. Como explicou Renato Baldini, chefe-adjunto do Departamento de Estatísticas do Banco Central: "O governo registra receitas e despesas, detalhando aspectos como investimentos, o Banco Central foca apenas na variação da dívida".

Esta metodologia apresenta distorções significativas:

  • Não diferencia despesas correntes de investimentos (CAPEX), tratando ambos como gastos equivalentes
  • Um aumento não recorrente nos investimentos pode distorcer as estatísticas, já que esses gastos são incluídos de uma só vez e não diluídos ao longo do tempo como depreciação
  • O resultado negativo não significa necessariamente prejuízo contábil, mas sim a necessidade de capital das estatais em determinado período

O Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, responsável pela administração das estatais, contesta frontalmente a metodologia do BC. A pasta alega que os dados "não refletem a real situação financeira das estatais, pois não detalham receitas, custos, ativos, passivos e lucro líquido".

Um dos aspectos mais problemáticos na divulgação midiática do "rombo" é a exclusão seletiva de estatais lucrativas nos cálculos do Banco Central. São deliberadamente deixadas de fora das estatísticas:

  • Petrobras
  • Banco do Brasil
  • Caixa Econômica Federal
  • BNDES
  • Eletrobras (após privatização)

Esta exclusão é particularmente reveladora quando comparamos com a narrativa que contrapõe os governos Bolsonaro e Lula. Em 2021, no governo Bolsonaro, foi amplamente divulgado um lucro recorde das estatais federais de R$ 187,7 bilhões. O que não foi igualmente destacado é que este valor era composto 98% por apenas cinco empresas: Petrobras, BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Eletrobras.

Já os dados deficitários do governo Lula, amplamente divulgados, não incluem essas mesmas empresas, criando uma comparação enviesada e desleal. Como observou o professor Paulo Feldmann, da FEA-USP: "A comparação não é válida porque uma gestão que quer privatizar vai fazer com que as empresas lucrem e se tornem mais atrativas para venda".

Curiosamente, quando consideramos todas as estatais federais, incluindo as excluídas pelo BC, o resultado líquido de 2023 (último dado completo disponível) foi de R$ 197,9 bilhões, valor superior aos R$ 187,7 bilhões de 2021 no governo Bolsonaro.

O governo argumenta que parte substantiva dos déficits reportados pelo BC explica-se pelo fato de que muitas estatais receberam aportes do Tesouro Nacional entre 2018 e 2019 (governos Temer e Bolsonaro) para realizar investimentos nos exercícios seguintes. No ano do recebimento desses recursos, o resultado primário tende a melhorar substancialmente, mas como os projetos de investimento são de longo prazo, eles se distribuem ao longo dos anos subsequentes, gerando déficits sucessivos até a conclusão do projeto.

Além disso, o Ministério da Gestão ressalta que: "Os déficits das empresas estatais federais não dependentes são cobertos pelos caixas das próprias empresas, carregados em anos anteriores, e não representam qualquer necessidade de recursos do Tesouro Nacional".

Muitas estatais prestam serviços essenciais e geram impactos sociais positivos que não são capturados pela contabilidade tradicional. Dois exemplos notáveis:

  • Embrapa: em 2023, reportou um lucro social de R$ 85,1 bilhões proveniente do impacto econômico de soluções tecnológicas geradas. A metodologia da empresa calcula o excedente econômico sobre ganhos de produtividade, redução de custos, agregação de valor e expansão da produção em novas áreas.
  • Codevasf: reportou um lucro social de R$ 7,02 bilhões em 2022, representando 5,44 vezes sua receita operacional líquida. Isso significa que cada R$ 1 investido pela União retornou R$ 5,44 à sociedade.

É significativo notar que, mesmo com os supostos "déficits", o setor público registrou um superávit primário de R$ 14,1 bilhões em abril de 2025, demonstrando que a situação fiscal geral não é tão crítica quanto sugerido pela narrativa do "rombo das estatais".

O debate sobre as estatais frequentemente ignora seu caráter estratégico e função social. Como observou Eduardo Araújo de Souza: "O Estado tem a sua finalidade originária de assegurar a estabilidade social, mantendo o equilíbrio financeiro e fiscal com a finalidade da gestão pública de atender às necessidades da população em busca da justiça social".

Em vez de focar exclusivamente em métricas financeiras de curto prazo, especialistas sugerem que a avaliação das estatais deveria considerar:

  • Indicadores como o EBITDA, comum no setor privado
  • Taxas sociais de retorno dos investimentos
  • Impacto no desenvolvimento regional e nacional
  • Contribuição para políticas públicas essenciais

A análise dos dados disponíveis revela que a narrativa do "rombo das estatais" é, em grande medida, construída através de escolhas metodológicas questionáveis e exclusões convenientes de empresas lucrativas do cálculo. Embora existam desafios reais de gestão em algumas estatais - como Correios e Infraero - o quadro geral é consideravelmente infinitamente menos alarmante do que o propagado por setores da mídia e analistas econômicos conservadores.

Como em qualquer debate complexo sobre políticas públicas, é essencial ir além das manchetes simplificadas e examinar as premissas, metodologias e contextos por trás dos números. Somente assim podemos ter uma discussão honesta e produtiva sobre o papel das estatais no desenvolvimento nacional e a melhor forma de avaliar seu desempenho.

Com informações de: Revista Oeste, FGV, O Globo, Veja, G1, Estadão, Poder360, Brasil de Fato. ■